Aroldo Pinheiro,  roraimense, comerciante, jornalista formado pela Universidade Federal de Roraima. Três livros publicados: "30 CONTOS DIVERSOS - Causos de nossa gente" (2003), "A MOSCA - Romance de vida e de morte" (2004) e "20 CONTOS INVERSOS E DOIS DEDOS DE PROSA - Causos de nossa gente".

    Aroldo Pinheiro

    A morte do pistoleiro

    Paradoxalmente, a modernidade nos aproxima da antiguidade.

    Com as facilidades oferecidas pela internet, usuários de redes sociais de relacionamento estão sempre buscando coisas que os ligue ao passado. Buscam-se amigos dos primeiros anos de escola, buscam-se ex-namorados, buscam-se parentes com quem não se fala há muitos anos. Fotografias, músicas, filmes e livros antigos também ocupam muitos megabites nessa inconsciente volta aos tempos de outrora.

    Há poucos dias, um vídeo com Bob Nelson, famoso cantor de músicas do faroeste americano, que fez sucesso lá pelos anos 1950 e 1960, estava sendo divulgado em um dos grupos que frequento. Ouvindo o tiroleite, tiroleite, tiroleite do falso paladino e lembrei-me de Edmilson Lone.

    Para sobreviver, ele pintava paredes e abria letreiros no incipiente comércio de Boa Vista. Nas noites de quinta-feira, inspirado em Kit Carson, o correio das planícies, ele vestia calça Coringa, camisa quadriculada cheia de bolsos, fricotes e franjas e, no Programa Jaber Xaud, largava o pau a cantar os tiroleites em clara imitação do estilo Bob Nelson.

    Na cidade, ele era conhecido por Baiacu. Não me lembro de seu nome verdadeiro.

    Edmilson Lone, o alter ego, aos poucos foi tomando conta da mente de Baiacu. O pintor, de repente, passou a sair fantasiado de caubói para todos os lugares.

    Mesmo nos degraus de escadas rudimentares, nosso herói empunhava pincéis e broxas como se fossem Smith & Wessons ou Colts. Baiacu acreditava ter a missão de expulsar os malfeitores da pacata cidade boa-vistense.

    Uma noite, nosso xerife entrou na sinuca do Vicentão, levantou a aba do chapéu e, depois de correr a vista por todo o recinto, encarou João-bate-pronto e mandou-o retirar-se do meio dos homens de bem.
    Pessoa de pouca conversa, nervoso, João entornou o copo de pinga numa só talagada e, ato contínuo, desceu a porrada em Edmilson Lone.

    Dias depois, antes de sair do hospital, Baiacu pediu para a mãe atear fogo nos acessórios e vestes de caubói e dar fim a todos os discos de Bob Nelson.

    Naquela data, morreu nosso herói do lavrado. Morreu o nosso pistoleiro

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    Dinheiro suspeito

    Roraimense, engenheiro, elegeu-se governador do Estado. No início, as coisas até andavam bem. Ao fim do segundo ano de mandato, porém, a roubalheira comeu no centro e qualquer moleque comentava e fazia troça sobre desmandos do mandatário.

    Botafoguense apaixonado, o chefe do Executivo também arriscava umas pernadas atrás da bola. Aos domingos, ele não dispensava uma pelada, situação em que bajuladores aproveitavam para dar-lhe os melhores passes. Até goleiros se deixavam levar pelo puxa-saquismo e facilitavam frangos para que a autoridade marcasse e festejasse gols.

    Numa dessas peladas de fim de semana, em disputa mais brusca, a autoridade foi ao chão. A pelegada reuniu-se para socorrê-lo e ao ver que o governador não poderia voltar ao campo, a partida foi encerrada por ali mesmo.
    Depois de massagens e fricções com géis, a autoridade foi levada para sua residência.

    Com dores, muitas dores, o governador decidiu mandar buscar médico ortopedista, servidor da Secretaria de Saúde, para avaliar e cuidar do machucado.

    Depois de cuidadosos exames e imobilização de ossos e nervos injuriados, o ortopedista sacou o receituário, escreveu algo que nem ele sabia ler, passou o papelucho para autoridade, fez-lhe algumas recomendações e quando fechava a maletinha, preparando-se para deixar o recinto, ouviu:

    - Muito obrigado, doutor.

    O doutor encarou a autoridade e falou:

    - Governador, hoje é domingo. Sou funcionário da Secretaria de Saúde, mas estou fora de meu plantão. Para atendê-lo, privei-me da companhia de meus filhos e de minha esposa. A visita e o tratamento ficam em R$ 3 mil reais.

    Mostrando-se surpreso, agora com cara de poucos amigos, o governador pediu que sua esposa fosse buscar dinheiro "daquele monte que estava no guarda-roupas". Ao receber os pacotes de oncinhas, repassou-os ao médico com a reclamação:

    - Aqui estão seus R$ 3 mil, mas saiba que isso é um roubo.

    Resposta do médico:

    - Não quero nem saber da procedência, governador. Só quero o que é meu...

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    Zé Leitão, comentarista de futebol

    Mister Drops. Conheci-o quando eu ainda era criança. Nosso vizinho de frente, Zé Leitão era uma festa. Inteligente, culto, bem humorado; dava prazer conversar com ele. Não sei a origem do apelido. Lembro-me que ele viajava frequentemente para Georgetown, onde comprava de tudo para abastecer a Boa Vista dos anos 1960. O cognome certamente veio da então Guiana Inglesa.

    Meu primeiro contato com Ray Charles deu-se por meio de Zé Leitão. Numa dessas viagens ao exterior, ele trouxe um compacto 45rpm, daqueles com buracão no centro; o sucesso: I can't stop loving you.

    Cresci, tornei-me adulto e desfrutei do prazer de ter Mister Drops como amigo. Fomos parceiros de canastra durante muitos anos. Sortudo, bom jogador, Zé Leitão era obcecado por canastras de ases. Posso dizer que ele tinha orgasmos ao fazer uma dessas completinhas de sete cartas.

    Hoje, assistindo a jogos da Copa do Mundo, lembrei-me de meu amigo e de fato interessante.

    Lá pelos anos 1980. Durante um campeonato mundial de futebol, dirigi-me à serraria de seu Zé para comprar madeiras. Solzão de três da tarde. Ao ser atendido por Oziel, pedi-lhe água para matar a sede.Conduzido à residência dos Leitões – uma edícula atrás do escritório da empresa –, entrei ouvindo mais uma fantasiosa mentira do vendedor. O dono do estabelecimento, sentado à frente do televisor reclamou:

    - Por favor, façam silêncio: quero prestar atenção no jogo...

    Para assuntar e passar por cima de nossa falta de respeito, perguntei:

    - Quanto está o jogo, seu Zé?

    O empresário tirou os óculos e, dirigindo a voz para porta aberta em outro cômododa casa, gritou:

    -Silvan: quanto está o jogo, meu filho?

    De lá, uma voz:

    - Dois a um!

    Seu Zé me retransmite a mensagem:

    - Tá dois a um.

    Curioso, resolvi me inteirar:

    - Dois a um pra quem, seu Zé?

    Ele, sem desviar os olhos da telinha, recolocou os óculos e, novamente, gritou:

    - Meu filho: quem está jogando? 

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    Saudade de quem não conheço

    Não gosto de conversar com estranhos. Quando viajo, levo comigo algumas revistinhas de palavras cruzadas e, para evitar papos chatos, me entrego aos quebra-cabeças.

    No saguão do aeroporto de Brasília, esperando chamada para embarque, eu estava atracado com minha "Recreativa". "Cidade paulista, 15 letras". "Itaquaquecetuba? É, pode ser". Levantei a vista e meus olhos se encontraram com os olhos de um cara sentado à minha frente. Ele acenou. Eu respondi ao cumprimento. Abaixei a vista. "Conheço esse cara de onde?" Rei do furo, péssimo fisionomista, decidi ignorá-lo. Senti que a peça continuava me olhando. "Não vou levantar a vista. Acho que não conheço esse sujeito".

    Esqueci-me de Itaquequecetuba. Já estava incomodado com o fato de não poder levantar a vista. Sentia-me preso. Preso, mas não queria dar chance ao mico.

    Sede. O cara levantou-se e encaminhou-se ao banheiro. Aproveitei para enfrentar a fila da lanchonete em busca de água. Uma mão toca meu ombro. Olho. "Socorro, é ele!".

    - Tudo bem? Mundo pequeno, né? – Começou o intruso.

    - É isso aí, cara. – Respondi laconicamente. Minha vontade era voltar para minhas palavras cruzadas.

    - Tem uns vinte anos que a gente não se vê, né? A última vez foi aqui mesmo neste aeroporto.

    "Pronto. Quem é esse cara?" A mente começou a dar voltas pelo passado. Nada. Ele acrescentou:

    - Encontrei-me com Narinha na semana passada. Ela ainda é apaixonada por você. Não sei porque não deu certo. Todo mundo achava que vocês iam se casar...

    - Como ela está? – Arrisquei, mesmo sem me ter caído a ficha. Eu continuava sem saber quem era aquele sujeito. Também não sabia quem era essa menina apaixonada por mim

    De repente, chamada para embarque no portão 9. Ele diz que é o voo dele, me dá um abraço e, antes de cruzar porta, grita:

    - Tou no Face. Procura... A turma toda tá lá.

    - Ok, cara, boa viagem!

    Não consegui mais me concentrar em meu quebra-cabeça. Não sei mesmo quem era aquele sujeito, mas embarquei com uma vontade danada de conhecer a Narinha. 

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    A descura

    Com a morte de Venceslau, dona Merandolina entrou em depressão. Aos 71 anos de idade, perdeu tesão pela vida. A respeitável senhora, que noutros tempos participava ativamente de tudo, passou a viver trancada no quarto. Não saía da cama. Até cuidados com a higiene foram para as cucuias. O único filho de Lina, Austregésio, sofria com a apatia da mãe. 

    Aconselhado, resolveu procurar ajuda com doutor Jack Areh, renomado psiquiatra.

    Com muito custo, dona Merandolina foi convencida a acompanhá-lo à clínica.

    No consultório, depois de conversar com a paciente, o médico prescreveu-lhe alguns antidepressivos e garantiu para o filho que logo, logo, a viúva voltaria à vida normal.

    Passados alguns dias, o telefone do psiquiatra tocou:

    - Alô...

    - Bom dia, doutor... Aqui fala o Austregésio...

    - Bom dia, Gésio... Como está sua mãe? Melhorou?

    - Muito doutor. Bem mais do que esperávamos.

    - E em que eu posso ajudar?

    - Doutor, o tratamento que o senhor passou pra mãeinha fez efeito. Mas fez efeito exagerado, muito além do que a gente esperava. De uns quinze dias pra cá, um boyzinho, em carro rebaixado, para em nosso portão todas as noites e mãeinha sai de casa exageradamente maquiada, usando roupas que não condizem com a idade dela. No sábado, doutor, resolvi segui-la e dei com ela num inferninho... Mãeinha estava com os peitos de fora, dançando em cima da mesa e rodando o top acima da cabeça. Assim não dá, doutor. Quero que o senhor descure mãeinha...

    Antes que o médico falasse alguma coisa, Austregésio acrescentou:

    - É urgente, viu doutor!

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    E Deus levou Malu

    Muita gente pensa que ela era roraimense. Não era. Maria Luíza Vieira chegou ao então território federal em 1942, com um ano de idade. Posso garantir, entretanto, que Malu tinha mais amor por essa terra do que muitos roraimenses natos.
    Fui parido em 1954, na rua Antônio Bittencourt. Malu, então com 13 anos, me viu nascer, pois nossa casa ficava bem pertinho da residência dela, ali pelas adjacências da Praça Barreto Leite.
    Na pequena cidade, com poucas almas, Malu, desde a adolescência, agitava o meio cultural. Cirandas, quadrilhas e folguedos juninos eram com ela. Com apoio das madres do Colégio Sâo José, Malu formava grupos de jovens e fazia acontecer.
    Tornei-me amigo de Malu Campos há algum tempo. Nela, descobri pessoa inteligente, bem humorada, determinada. Artes faziam parte da vida da paraense. Lembro-me de termos passado uma tarde juntos, vendo seus escritos, recortes de jornais e peças artesanais. Disse-me, naquele dia, que planejava escrever um livro com causos interessantes sobre Roraima e sua gente. Não teve tempo para isso; a ceifadora de vidas levou-a antes.
    Há poucos anos, a diabetes forçou a amputação de uma das pernas de Malu. A ânsia de viver não deixou-a abater-se. Nem levou o seu bom humor. Disse-me, depois disso, que planejava ser enterrada inteirinha, "mas, se Deus quer assim, vou por partes".
    Redes sociais que, em tese, deveriam aproximar as pessoas, provocam distanciamento. Acompanhando notícias sobre Malu Campos via Facebook, acomodei-me e não lhe fiz nenhuma visita nos últimos anos. Perdi muito, pois conversar com ela era, além de divertido, um verdadeiro aprendizado.
    E Malu se foi. Com ela, foi-se parte boa da história de nossa terra.
    Que Deus tenha um bom lugar pra ti, Malu.

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    Festa surpresa

    Aniversário de meu compadre, 50 anos. Reuni-me com alguns amigos e decidimos fazer-lhe festa surpresa. Depois de muitas conjecturas, escolhemos a casa do aniversariante para o regabofe. 

    Como afastá-lo de casa para organizar a furupa? Fiquei com a tarefa de fazê-lo. Eu me encarregaria de prendê-lo na rua entre 18h e 20h.
    No final da tarde do dia programado, uma quarta-feira, dirigi-me ao escritório do aniversariante e convidei-o para tomar uma cerveja. Claro que ele estranhou, pois não sou de beber durante a semana nem sou de sentar em bar para tomar cerveja. Mesmo ressabiado, meu compadre aceitou.

    Sentamo-nos no Pit Stop e, ali em volta, enquanto pessoas faziam caminhada para manter a forma, nós largamos o pau a tomar cervejas para aumentar a barriga e jogar conversa fora. Meu compadre, inquieto, dava tratos à bola imaginando o motivo do convite e o fato de estarmos no barzinho por tanto tempo. 

    Pelo celular, me avisam que estava tudo no jeito, que havia chegado a hora de levar o aniversariante para sua festa. Pagamos a conta e, com meu compadre no carro, segui lentamente para a residência dele. Durante o trajeto, eu falava o tempo todo. Não podia deixa-lo raciocinar.

    Tomei a avenida Ville Roy, dobrei à esquerda na Severino Soares de Freitas e, depois de alguns quilômetros rodados, quando dobrei à direita e entrei na quadra da festa, o aniversariante, vendo a fumaça que saía de sua residência, comentou com sorriso maroto:

    - Compadre, se minha casa não estiver pegando fogo, estão fazendo churrasco por lá.


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    O santo das causas impossíveis e a velhinha pidona

    Minha mãe sempre foi carola. Ao mudar-se para Brasília, na década de 1980, conheceu Santo Expedito e apaixonou-se pelo encarregado das causas impossíveis.

    A igreja de Expedito fica a poucos metros do apê de Neuzinha e ela, agora íntima, quando vai ao templo para suas orações, avisa: "Vou ali na casa do vizinho".

    Família grande sempre tem problemas. Saúde física, saúde financeira, amor, desamor, mamãe está sempre apelando para Santo Expedito pelos seus. Pior – ou melhor? – é que a maioria das preces dela, parece, são sempre ouvidas.

    Daniel, meu filho, foi aprovado em concurso para a Polícia Civil do Distrito Federal. O roubo de Agnelo, quando governador do DF, deixou a Segurança sem orçamento e Daniel, mesmo com os pedidos feitos a Santo Expedito, nunca foi chamado.

    Há algum tempo, sendo meu filho aprovado em concurso para o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, Neuzinha carregou nos pedidos para que Expedito intercedesse junto ao chefe supremo: Deus.

    Deu certo. Daniel assumiu vaga no TJDFT. A família reuniu-se em almoço para comemorar a vitória do meu menino. Mamãe preferiu não ir.

    Terminada a farra, quando cheguei ao apê, encontrei Neuzinha aos pés da imagem de Santo Expedito. Antes que mamãe desse por minha presença, ainda ouvi-a dizer: "Meu Santo, você deve estar de saco cheio de meus pedidos... Descanse e retome suas atividades, pois, por aí, deve ter muita gente precisando de sua ajuda. Eu, com essa vitória conseguida por meu neto, prometo que vou dar um tempo e passar pelo menos um ano sem lhe pedir nada..." 

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    Aroldo Pinheiro

    Visitas íntimas

    Segunda-feira, cedinho, os policiais invadiam as alas, acordavam os presos e os encaminhavam para o pátio. Ali, eram obrigados a tirar a roupa e, de cócoras, esperar pela meticulosa revista que estava sendo feita nas celas.

    Aos poucos, sobre longo balcão de madeira, as mais inusitadas peças apreendidas eram amontoadas: tesouras, terçados, estiletes, cutelos, telefones celulares de última geração, garrafas de pinga, papelotes contendo drogas ilícitas... Até duas foices e um machado foram encontrados debaixo de uma cama.

    De repente, cabo Atanásio surgiu conduzindo, dois galos que tentavam escapar do forte cheiro exalado pelos sovacos do policial. Galos mesmo. Galos de verdade. Desses que dizem cu-cu-ru-cu. Duas aves fortes bonitas, esbeltas, multicoloridas. Pelo porte, pescoços pelados e esporões afiados, qualquer um, mesmo que nunca tivesse pisado numa rinha, sabia que ali estavam dois galos de briga.

    Popó e Éder Jofre, estes eram os nomes daqueles dois lutadores que preenchiam o tempo e valorizavam as apostas dos presidiários em seus poucos momentos de lazer.

    Carinhoso, condenado a 28 anos por ter matado a mulher com 59 facadas, apelou:

    - Doutor, por favor, não leve esses galos... Eles são de estimação.

    O representante do Ministério Público interpelou-o:

    - Por que não? O que esses galos fazem aqui dentro?

    - Eles são pra reprodução, doutor... – respondeu o presidiário.

    - Reprodução, né? E cadê as galinhas?

    - Elas só vêm às quartas e aos domingos, doutor... Dias de visita... As frangotas só vêm para visitas íntimas...

    Claro que Popó e Éder Jofre, agora, estão atrás das telas de outro galinheiro.

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    Jipe velho (mas tinindo)

    E eis que aquela "linda criança que, na pia batismal", segundo Laucides Oliveira, em edição de março de 1954 do jornal O Átomo, "receberá o nome de Aroldo", chega aos 64 anos. Não doeu. Nem deu pra sentir. Como diria o papagaio: "Num tô tintindo nada".

    Olhando pra trás, vejo que cometi alguns erros. Mas quem não errou? Cristo, filho de Deus, nascido em Belém, cometeu seus deslizes; por que não eu, filho de migrantes cearenses que vieram para estas plagas em busca de dias melhores, aparado por mãos de parteira, passaria em branco? Na contabilidade da vida, vejo mais acertos do que erros. Passando a régua, estou no saldo. Minha norma é usar erros como base para acertos. 

    Espiritualmente, sou mais completo do que muita gente. Calma, Santa, eu explico. Criado sob orientação católica apostólica romana, recebi todos os sete sacramentos preconizados pelo Vaticano: batismo, confissão, arrependimento, comunhão, crisma, casamento e extrema unção. É, sou extremo ungido. Aos treze anos de idade, quando à beira da morte por causa de acidente, minha alma foi encomendada a Deus por padre Mauro Francello.

    Não sei se ainda vale, mas, se valer, tenho mais chances de aproximar-me Dele do que muita gente. Como diria Ibrahim Sued: "Sorry, periferia".

    Se escolhesse um carro para comparação, acho que eu seria um jipe. Não desses jipinhos furrecas fabricados por japoneses, chineses e coreanos; seria um daqueles robustos, com farol alto e para-choque duro.

    As peculiaridades de um motor quatro tempos estão tinindo: alimentação, ignição, explosão e escape. O sistema digestivo vai bem, obrigado: comendo de tudo. A vela lança centelhas de fazer inveja a muitos desses motores modernos. A explosão nunca falhou e sempre responde nas horas certas. O escapamento é zerado, do jeitinho que veio do fabricante. Salvo algumas incursões para revisões periódicas, o Kadron nunca recebeu corpos estranhos. 

    Lataria. Ah, a lataria. Esta, que nunca passou por lanternagem, tem alguns pequenos amassados no ferro e trincas na pintura. Em nome da originalidade, melhor não mexer. Pode ser que o resultado seja desastroso.
    Quase me esqueço da capota. Como diz Cearazinho, meu filósofo de boteco, a capota "tá um pouco 'distiorada'". A cor negra vinílica, de fábrica, vem cedendo lugar para manchas brancas. Aqui, acolá, uma falha. Mas, tudo bem; quem precisa de capota no calor miserável desta nossa terra querida?

    No dia de meu sexagésimo quarto aniversário, acordei pensando em me desfazer dessa máquina. Depois, raciocinando com calma, lembrei-me que não se troca o certo pelo duvidoso.

    Para alegria de uns e tristeza de outros, esse jipão, modelo 1954, ainda há de colher alguns cajus.

    Parabéns à Willys Overland do Brasil por ter colocado no mundo uma máquina assim.

    Obrigado a papai e mamãe por terem me feito, como dizem mineiros, "desjeitim".

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    Sequestrador ciumento

    Poucos minutos depois de ter encerrado conversa pelo WhatsApp com meu filho, o telefone tocou. O nome da pessoa não apareceu no display. O número começava com 085. Pensei não atender, pois não tenho ninguém no Nordeste. "Tudo bem, vamos ver o que querem me vender", pensei.

    - Oi...

    Voz forte, com eco, ameaçou:

    - Estou com seu filho. Se quiser ter seu menino de volta inteirinho, faça o que lhe digo.

    - ????

    - Antes de mais nada: não desligue o celular nem fale com ninguém até a gente terminar a transação...

    Lá no fundo, uma voz gritava: "Pai, faça o que eles mandarem. Eles estão me torturando". Se eu não tivesse acabado de falar com Daniel, poderia pensar que, de fato, ele estava em poder de sequestradores. Mantive a calma e entrei no jogo.

    - Olha, você não sabe o trabalho que esse menino me dá. Se quiser, pode ficar com ele...

    - O senhor pensa que isso é brincadeira? Eu não tenho nada a perder. Se o senhor não seguir minhas instruções, pode chamar a família pro enterro do seu garoto.

    Balancei. É verdade ou trata-se de golpe do sequestro? Meu filho vive em Brasília e, com 36 anos, já não é nenhum garoto. Convenci-me de que era aplicação e resolvi sacanear com o vigarista.

    - Olhe moço, como já lhe disse, pode ficar com o menino. Na verdade, acho que estou fazendo um bom negócio... Sua mãe está aqui em casa e tem me dado muito prazer. Pense numa velhinha danada...

    - O quê?!!!

    - Estou dizendo que sua mãe está aqui comigo. E, com meu filho, eu nunca faria o que eu faço com ela. Rapaz, tu sabias que tua velha gosta de trepar?

    O cara me xingou de viado, me mandou tomar naquele lugar que eu nunca irei e desligou ou telefone.

    Enquanto me servia de uma dose de uísque, fiquei dando feições à velha que eu acabara de inventar.

     

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    OVNI de água doce

    No sábado de carnaval, acordo com telefonema. Não vou citar o nome de quem me ligou para não ter problema com a Justiça. O que esse arquiteto, nascido no Piauí, formado em João Pessoa, morador em Roraima há muitos anos queria falar comigo? Sei que ele está comemorando um ano de sobrevida com coração novo e turbinado. Resolvo atender:

    - Bom dia, cara...

    - Aroldo, tu gostas de disco voador?

    Que diabo é isso? Pegadinha? Convite para sair fantasiado em algum bloco carnavalesco? Alguma notícia sobre OVNI (Objeto voador não identificado) para meu jornaleco? Arrisquei:

    - Não tenho nada contra. Sobre o assunto,muita curiosidade...

    - É que vai ter um aqui em casa ao meio-dia e meia. Convidei só os amigos queridos e mais chegados...

    Agora deu. Aterrissagem de disco voador com hora marcada? Com comissão de recepção? Não sabia que meu amigo era chegado a essas coisas meio sobrenaturais. Aquiesci:

    - Tá bom. Posso levar meu fotógrafo junto?

    - Não. Sem câmeras. Sem registro.

    Pensei: "Puxa, tenho um furo à mão e não posso registrar?" Antes que eu me fizesse mais alguma pergunta, meu interlocutor acrescentou:

    - E não precisa trazer cerveja. O congelador está atopetado de garrafas vestidas de noiva.

    Pirei. Vão receber ETs com bebida? Que conceito os extra terrenos vão levar sobre terráqueos? Para ter certeza do que estávamos falando, resolvi mostrar minha ignorância sobre o assunto.

    - Cara, num tou intendeindo nada...

    Ele riu e disparou:

    - Porra, falar cifrado com quem não entende de cifras é foda. Tou falando de tartaruga, cara. Quelônio!!! Tartarugada com sarapatel, batidinho, farofa de casco com farinha do Uarini e molho com pimenta olho de peixe... – Acrescentou: "E se algum homem da lei estiver gravando esse telefonema, vai todo mundo preso".

    Rimos muito. O almoço estava delicioso. Bom reencontrar amigos em torno de um crime tão revigorante.

    Em tempo: Esta é uma história de pura ficção. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é mera coincidência. E ocorreu em Lethem, na Guiana – onde pode-se comer tartarugas à vontade.

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    Aroldo Pinheiro

    O desconvidado

    Era como uma confraria. Todos se conheciam há muito tempo e tinham muito em comum. Oito casais de classe média que conservavam ótima convivência. Fins de semana, piqueniques, acampamentos, festas, barzinhos, boates, algumas viagens... Tudo eles faziam em conjunto.

    Na cidade, invejosos teciam mil histórias a respeito do grupo. Normal que fosse assim, como assim era na fábula da raposa e as uvas. Os comentários inventados com muita maldade não abalavam aquele relacionamento. Às vezes, até se divertiam sabendo que o grupo ocupava a crista da fofocagem cultivada pelos maliciosos.

    Surgiam histórias do tipo: "Ali rola cocaína!"; "Eles sempre se reúnem para um troca-troca"; "Ali, ninguém é de ninguém" "O caseiro do Alberto disse que a sala está sempre suja de pó branco depois das reuniões." Eles não estavam nem aí. Levavam suas vidas saudável e prazerosamente, aproveitando, comendo e bebendo do bom e do melhor... E se divertindo muuuuiiito.

    No carnaval, como sempre, reservaram duas mesas para as três noites de folia no melhor e mais tradicional clube da cidade. Escolheram fantasias, programaram onde seriam os "esquentas" e os "caldões da ressaca", estocaram uísque, cerveja, Engov, Sonrisal e Epocler para o período momesco e caíram na farra.

    Na última noite, terça-feira, lá estavam eles ora brincando nas mesas, ora dando voltas no salão, ora visitando mesas de amigos, ora dançando no meio da banda... Normal. A festa era só animação. Já tinha tocado o Zé Pereira, Mulata Bossa-nova, A Jardineira, Lambretinha, Máscara Negra, Bandeira Branca, Bibelô Chinês, Mamãe Eu Quero, alguns sambas-enredo...

    O dia amanhecendo e o carnaval comendo no centro. João Fernando, inconveniente, mau caráter, invejoso, fofoqueiro, casado com Marília, mulher, feia e mal enjambrada, encontrava-se no clube e, desde o início da festa, forçava uma situação para aproximar-se daquele animado grupo de amigos. Eles, conhecedores da fama e inconveniências do casal despeitado, não davam abertura.

    Lá pelas seis da manhã, já ao som de Cidade Maravilhosa - tradicionalmente última música do carnaval, João chegou-se a um dos integrantes daquela turma e, alto, ao seu ouvido, perguntou:

    - Escuta, a que horas vocês vão começar o troca-troca?

    Pedro, muito espirituoso, só pra sacaneá-lo, respondeu num tom que poderia ser ouvido por todos os presentes:

    - O nosso troca-troca vai começar daqui a pouco, logo que acabar a festa... Mas tem uma coisa, João, tu não podes ir conosco não. A tua mulher é feia pra caralho e quem ficar com ela leva desvantagem!!!

    Dada a resposta, Pedro José abriu largo sorriso de satisfação, sorveu reforçado trago de uísque e caiu, dedos levantados, no meio da folia:

    – ...cheia de encantos mil/Cidade Maravilhosa, coração do meu Brasil... 

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    Aroldo Pinheiro

    Morto é morto

    Em Rurópolis, sul do Pará, aproveitando derrubadas de enormes árvores – suas e à sua volta – seu Manel adquiriu equipamentos e montou funerária que seria explorada pelo filho, Tuísca.

    De repente, uma tragédia! Na saída da cidadezinha, uma caçamba capotou. 14 mortos. O prefeito determinou que seu Manel fabricasse caixões para os desgraçados que tiveram o azar de morrer naquele fim de mundo.

    Seu Manel e Tuísca festejaram. Em um só dia, venderiam mais caixões do que venderam nos últimos cinco anos. Com pagamento antecipado, largaram o pau a construir ataúdes.

    Com os caixões acomodados no Mercedes 1111, o pessoal chegou ao galpão onde estavam os cadáveres. Combinados sobre o sistema a ser usado no reconhecimento e acomodação, seu Manel gritava: "Aroldo Pinheiro de Souza!" Tuísca, entre os corpos, localizava o nominado e respondia: "Presente!" O corpo era encaixotado e recebia papel de identificação.

    Um, dois, três, oito defuntos reconhecidos, prontos e acomodados em seus respectivos paletós de madeira; seu Manel seguia na chamada: "Moisés Brasilino Filho!"

    Tuísca se aproximou de defunto vestindo calça rosa de lycra, camisa azul degradê, com lenço de seda ao pescoço, e respondeu: "Presente!"

    Ao tentar arrastar o corpo, ouviu um sussurro efeminado:

    – Moço, eu não tou morto...

    – Papai, venha cá: esse cara diz que tá vivo! – Apavorou-se Tuísca.

    Seu Manel, papéis à mão, aproximou-se e ouviu o caboclo bodejar: – Eu tou vivo.

    – Vivo? Tu tá doido? – Questionou seu Manel, com medo de ter que devolver dinheiro por caixão não utilizado e, vendo o jeito estranho daquela aberração, acrescentou: "Olha, mana, tu pelo menos sabe escrever?" O empresário suspirou, puxou o moribundo pelos braços, acomodou-o no ataúde e encerrou: "Moisés, o doutor estudou muito pra se formar e disse que tu tá morto; o papel que o doutor assinou diz que tu tá morto... Agora, tu quer discutir com o doutor e com o atestado de óbito? Tu tá morto e vai ser enterrado, pronto!"

    Fez força, acomodou o gordo no caixão, jogou-lhe a tampa em cima e determinou:

    – Tuisca, aparafusa aí bem apertado, pois esse qualira é meio teimosinho!

    �Lw�@�_,. 

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    Aroldo Pinheiro

    Cabaré familiar

    Baiano, de Feira de Santana, Barroncas veio para Boa Vista em busca de dias melhores. Aqui ficou rico e empolgou-se. Ele, que era um exemplo de homem, entregou-se à farra, trocando Rotary, Maçonaria, patroa e filhos pela vida mundana. Dona Marieta não aguentou.

    Depois do divórcio, para tirar o peso da consciência, Barroncas jogava a culpa de seus desatinos em cima da sociedade que o acolhera. Fazia pouco caso e criticava as festas provincianas de que, outrora, fizera questão de participar.

    Por ocasião do carnaval, o empresário resolveu que tinha chegado a hora de dar o troco à sociedade hipócrita. Na terça-feira gorda, começou tomando cerveja e uísque no Cauamé e, de tardezinha, estava rodeado de mulheres em famosa casa de tolerância da, ainda, pequena cidade. No cabaré, convidou três quengas para acompanhá-lo ao baile no clube mais badalado de Boa Vista.

    Lá pela meia-noite, de braços dados com as três meninas graciosas, bem maquiadas, vestindo roupinhas que dariam tesão até no mais sério dos sacerdotes, Barroncas chegou à portaria do Iate.

    Ao ver a trupe, o porteiro não quis chamar pra si a responsabilidade de barrar ou a irresponsabilidade de deixar entrar o quarteto. Apelou para seu Alemão, um dos diretores do clube, para resolver o problema. Jeitoso, buscando evitar escândalo ou confusão, a autoridade iatiana conduziu o baiano para um canto e abriu-lhe o jogo:

    - Barroncas, você é gente boa e muito querido por todos nós. Nesse momento, queremos que você use o bom senso e, se quiser entrar no clube, devolva essas meninas para o lugar a que elas pertencem...

    - Mas por quê? – Desafiou o bebum.

    Seu Alemão resolveu ser direto:

    - É que aqui nesse clube, você sabe, só entram moças de família...

    Barrroncas contra atacou:

    - Companheiro, esse clube tá cheio de quengas. Olha, Alemão, ali naquela mesa da frente estão sentados seu Joaquim e as quatro putas que ele chama de filhas...

    Pra não perder a parada e não discutir com o bebum, o diretor sentenciou:

    - Tá bom, Barroncas: elas são putas conhecidas e putas conhecidas podem entrar ace =��_GՂ) 

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    Aroldo Pinheiro

    O milagre dos pães

    E o novo governador chegou ao, ainda, Território Federal de Roraima. Como de praxe, prefeito e boa parte de auxiliares vieram na bagagem do chefe do Executivo. Homem de visão, vendo a possibilidade de fazer-se politicamente em terras macuxis, o coronel determinou que o novo administrador da capital contratasse valores locais para auxiliá-lo.

    Depois de sondagens, o prefeito contratou, entre outros nativos, Romualdo Pereira para a Comissão Permanente de Licitação e a esposa deste para a Tesouraria. O casal viu ali a chance de ganhar dinheiro fácil e fazer o pé de meia. Ansiosos por especializar-se na arte de roubar, como ratos, viam, na verdade, a possibilidade de encher muitos meiões com dinheiro tomado de fornecedores da prefeitura.

    Na maior cara de pau, Romualdo cobrava comissão de quem fornecia para a prefeiturae Edinete achacava esses mesmos fornecedores na hora de fazer pagamentos.

    Ao final do primeiro ano em cargos chave da administração, Romualdo e Edinete compraram enorme terreno em área nobre e deram início à construção de mansão com qualidade e toques de luxo que só os mais abastados possuíam na cidade.

    No segundo ano, em dezembro, o casal resolveu, aproveitando o aniversário de Romualdo,inaugurar a bela e luxuosa mansão. A alta sociedade local foi convidada para o regabofe. Governado, prefeito e todos os seus secretários também.

    Com música ao vivo, impecável serviço de bufê, bebidas importadas rolando solta, os convivas se divertiam como nunca. O prefeito, ´serio, encafifado, prestava atenção naquilo tudo; em determinado momento, segurou no braço de Romualdo, puxou-o para um cantinho, e assuntou:

    - Meu filho, nós tomamos posse juntos, meu salário é duas vezes o que você ganha, tenho mordomias que você não tem: que tipo de aplicação ou que mágica você faz para seu dinheiro render tanto? Enquanto você construiu essa mansão, tudo que eu consegui foi dar entrada num apartamentozinho de três quartos em Niterói. 

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    Aroldo Pinheiro

    Velho escroto

    Fim de expediente, cinco e quarenta da tarde; apesar da hora, o calor roraimense está de espantar o capeta. Na lotérica, parece que resolveram desligar aparelhos de ar condicionado para economizar energia. Ninguém está aguentando o roubo praticado pela Eletrobras.

    Ali dentro, cerca de dez pessoas suam, se abanam e suspiram em fila que, para eles, é interminável. No segundo caixa, reservado para pessoas com deficiências físicas, uma velhinha se atrapalha com dinheiro trocado e todas as contas do mês.

    De repente, sujeito alto, barriga proeminente, vestindo calças jeans bem surradas que combinam com a camiseta desbotada, chapéu de pescador na cabeça, cruza a porta de entrada. Pés grandes, descalços, chamam a atenção dos presentes. Com papéis e dinheiro na mão, o novo cliente posta-se atrás da velhinha que tem dificuldade para fechar a conta.

    Caboclo alto, gordo, mal encarado, que ocupa a terceira posição na fila ao lado, olha agressivamente para o recém chegado e, ameaçadora e nervosamente, começa a sacudir-se sobre as pernas.

    Assim que a velhota acomoda papéis e troco na bolsa de pano e se afasta do guichê, o recém-chegado ocupa o espaço deixado, passa contas e dinheiro para a atendente e determina: "Faça também três Mega-Senas, por favor".

    O homão da fila ao lado, agora à véspera de ser atendido, brada:

    - Se eu não fosse o próximo da minha fila, eu ia tirar você desse caixa!

    O homem de chapéu olha para o ameaçador e pergunta: "É comigo?"

    - Sim. Quem você pensa que é pra chegar aqui assim e ser atendido na frente de todo mundo?

    - Sou só um cidadão que procura beneficiar-se de seus direitos.

    - Que direitos? Você é aleijado? É cego? Está grávido?

    - Não, meu amigo. Tenho 63 anos e, com essa idade, as leis me dão preferência.

    - Sessenta e três anos? Me engana que eu gosto...

    - É meu amigo: sessenta e três. Você acha que pra ter essa idade a gente tem que ficar feio e decrépito? Tenho 63 anos. Não vou lhe mostrar documento porque o senhor não é fiscal de idades nem merece minha atenção. Tenho prioridade e vou fazer uso dela.

    Chegou a vez de o agressor ser atendido e ele deixou o assunto de lado. Nisso, um velhote careca e encurvado que tinha entrado na lotérica quase sem ser notado aproxima-se do agredido e fala:

    - Ei, Abigobaldo! Vi tudo, cara. Bom saber que tu estás velho, mas continuas bonito e escroto. 

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    Aroldo Pinheiro

    Briga no zoológico

    Ali pelo terceiro quarto do século passado, quando Roraima ainda era território federal, o novo governador chegou trazendo seu prefeito a reboque. É, naquele tempo, nossos prefeitos eram nomeados pelos governadores. Para familiarizar-se com o modus vivendi da terra de Makunaima, homem esperto, o novo chefe do Executivo do município, nomeou um nativo para chefiar a Divisão de Pessoal. 

    Competente, o novo chefe de divisão tinha hábitos sexuais pouco heterodoxos: quando tomava umas cervejas, "ele deixava escapar a quarta", como diz meu amigo Tonhão. Na cidade, todo mundo sabia que aquele servidor municipal rabeava. Até a mulher dele sabia e estava sempre policiando as saídas do marido.

    O novo chefe da Divisão de Pessoal, querendo impor austeridade e mostrar serviço como todo novo chefe atraiu a antipatia dos outros barnabés do município. Mas, como se dizia naquele tempo, "ele não dava nem cartaz". Desde muito tempo, a prefeitura mantinha seu Leãozinho, um alcoólico, em sua folha de pagamento. Trabalhasse ou não, o bebum recebia sua graninha todo fim de mês.

    Numa manhã de segunda-feira, ao visitar o almoxarifado da repartição, o novo chefe da Divisão de Pessoal viu uma rede atada. Aproximou-se e, dentro da fianga, deu com Leãozinho todo vomitado, exalando forte cheiro da cachaça consumida no fim de semana. Incomodado, ele sacudiu a "Filomena" e, quando, o bebum acordou, bradou:

    - Que que é isso? Dormindo durante o expediente em plena manhã de segunda--feira?

    - Durmo. A rede é minha, o sono é meu, a ressaca é minha... Durmo mesmo.

    - Pois se o senhor não se levantar agora e tomar conta de seus afazeres, vai ser demitido.

    - Duvido, seu moço. Olhe, cabra safado, eu vou lhe dizer: sou Leãozinho... Leão! E desde quando um simples "viado" vai querer mandar no rei dos animais?

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    Aroldo Pinheiro

    Oficial da reserva

    Um amigo me contou essa história que, diz ele, se passou em cidadezinha do exterior. Não sei se na Bolívia ou na Croácia.

    Filho de barão fabricado no fim do último reinado, após a morte do pai, vaqueiro assumiu o comando das terras e dos capangas. Com algumas dezenas de homens prontos para cumprir ordens, Ophélio – assim mesmo, com pê e agá – concedeu-se o título de coronel, a exemplo de oficiais de barranco que ele conhecera durante a infância.

    O nascimento do primeiro herdeiro do coronel rendeu festa de três dias. Para garantir hierarquia na família, o oficial, que nunca serviu às armas oficiais de lugar nenhum, deu ao primogênito o pomposo título de major. Major Othávio. Seguindo a tradição, um dígrafo: tê e agá.

    O surgimento do segundo menino não mereceu menos festas. Apesar de protestos da esposa – que argumentava contra a aplicação de coisas de armas no seio familiar, coronel Ophélio registrou-o também com um tê agá e deu-lhe patente de capitão. Capitão Osthógio.,

    Osthógio já atingira maioridade, quando a mãe engravidou novamente. Coronel Ophélio, do alto de seus 76 anos, mostrava a barriga da patroa como se um troféu fosse: prova de que era macho e continuava dando no couro.

    Na casa, torcia-se para que este terceiro e último bebê a ser parido fosse uma menininha. Vendo a enorme barriga pontiaguda de Othília, as comadres previam que o sonho da mulher do coronel se realizaria. O quarto que abrigaria o novo rebento foi pintado de cor-de-rosa; presentinhos e coisinhas do enxoval seguiam o mesmo matiz.

    Contrariando previsões e desejos, nasceu um menino. Alegria do coronel e tristeza da patroa. Para essa criança, o velho fazendeiro fez mais festas do que nos surgimentos dos dois primeiros filhos e, ao caçula, em homenagem a si mesmo, deu nome de Ophélio Júnior. No tratamento do dia a dia, o título de tenente.

    O menino crescia com comportamento meio estranho. Não sei se carinhos em demasia, não sei se influenciado pelo excesso de cores-de-rosa em seus aposentos, não sei se paparicos das amas de leite, fato é que, com o passar do tempo, tenente Ophélio Júnior mostrava delicadeza e trejeitos que não condiziam com a virilidade requerida por sua patente. Aquilo mexia com o orgulho e a vaidade do velho coronel.

    Na festa de dez anos do tenente, Othília, atendendo súplicas da criança, decorou o salão da residência com muitas plumas e paetês. Depois do "Parabéns a você", Ophelinho desapareceu. Convidados estranharam a longa ausência do menino.

    E, de repente, as luzes da casa se apagaram, "I am what I am", de Gloria Gaynor, ecoou das caixas de som e, quando a iluminação retornou, na porta do quarto, vestindo colada malha azul turquesa, sapatilhas da mesma cor, cílios postiços com pesada maquiagem, desenvolvendo passos de dança nunca vistos na vizinhança, surgiu o oficial mais jovem do exército daquela residência.

    Desgostoso, coronel Ophélio saiu de cena. Depois que os convidados deixaram a festa, o fazendeiro reuniu familiares, criadagem, capangas e determinou:

    - Já vimos que Ophelinho não nasceu para as armas; para não ficar feio e calar essas línguas maledicentes, decidi passá-lo para a reserva.

    Na cidade, Ophélio Júnior passou a ser conhecido pelo simples apelido de "Juninho R2". Hoje, a casa erguida pelo coronel recebe clientela GLBT, WHS e YS2 para assistir shows de gosto duvidoso protagonizados pelo ex-militar.

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    Aroldo Pinheiro

    Brinquedo assassino do amor

     Um consumidor veio a mim fazer uma reclamação. Disseram-me que pediu para não fornecer o nome. Apesar do anonimato, fugi à regra e aceitei ouvi-lo.

    Adentrou em meu gabinete com um objeto em mãos, a razão de estar ali. Na primeira impressão, achei que lembrava um órgão sexual masculino, mas também parecia um robô. O que seria aquilo? Fiquei intrigado.

    Realmente era um objeto erótico. O reclamante comprou num sex-shop. A embalagem dizia ser uma mistura de vibrador com prótese.Constava escrito "sucesso garantido"! Mas, pelo fato de o comprador estar num órgão de defesa do consumidor, algo deveria ter dado errado...

    Ele me disse a motivação da visita, uma cena inusitada! Era uma segunda-feira. E nosso reclamante tentou usar com sua namorada na última sexta-feira. Aí o problema: segundo ele, não houve nenhum 'uso' como deveria ser. A namorada estava há três dias rindo sem parar, nem conseguia falar com ele mais. Estavam a ponto de terminar o relacionamento!

    Achei engraçado, mas me contive. Cometi o erro de pedir a ele para ligar o objeto: que coisa mais ridícula! PARECIA AGORA REALMENTE UM ROBÔ. FICAVA GIRANDO, COM UMAS LÂMPADAS PISCANDO, UMAS HASTES TIPO BRAÇOS SE MEXIAM, ATÉ UMA SIRENE FICAVA TOCANDO!

    Senti intensa vontade de dar risada! Mas não podia, estava ali trabalhando. Reduzi minha respiração ao máximo, parecia ioga. Se respirasse um pouco para forte, eu cairia no chão em gargalhadas.

    O reclamante queria o dinheiro de volta e uma indenização. Esteveantes na loja, porém não lhe deram ouvidos. Tecnicamente, o que eu faria? Aquilo seria uma 'falha do produto', que não atinge sua finalidade? Talvez até atingiu: não garantiu o prazer sexual, mas garantiu à namorada do reclamante um prazer de boas risadas! O caso estava mais para estelionato...

    Como seria a prova técnica? Quem faria uma perícia para indicar se aquilo funciona ou não como era anunciado? A namorada teria que ser ouvida para dar a opinião dela? Minha vontade de rir aumentava, eu já me sentia com a pele roxa por segurar minha respiração. Eu iria entrar no estado zen, quase flutuava!

    Daí a luz: disse a ele que seria preciso assinar uma reclamação. Pedi sua identidade. Ele abriu a carteira, tirou o documento, mas parou e pensou. Disse-me que deveria ir até o carro, pegar algo que esquecera. ATÉ HOJE NÃO RETORNOU PARA ASSINAR A RECLAMAÇÃO!

    Evito recordar este episódio. Quando me lembro, eu começo a rir sozinho. E quem está próximo deve achar que estou meio doido!

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