Aroldo Pinheiro,  roraimense, comerciante, jornalista formado pela Universidade Federal de Roraima. Três livros publicados: "30 CONTOS DIVERSOS - Causos de nossa gente" (2003), "A MOSCA - Romance de vida e de morte" (2004) e "20 CONTOS INVERSOS E DOIS DEDOS DE PROSA - Causos de nossa gente".

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    Selfies

    Enquanto esperava embarque no aeroporto de Campinas (SP), Carina Camacho, com a filhota Agnes, de um aninho, no braço, resolve registrar o momento. Olha em volta, aproxima-se de dois passantes e, dirigindo o celular a um deles, pede:
    - Moço, você poderia fazer uma foto?
    Simpático, ele pega o aparelho e se posiciona ao lado da jornalista para fazer uma selfie. Ela se afasta e diz:
    - Não, eu quero uma foto minha com minha filha...
    Feito o registro, Carina agradece e os dois passantes se afastam às gargalhadas.
    Mais tarde, na sala de embarque, Carina vê que diversas pessoas pedem para fazer selfies com o seu fotógrafo de minutos atrás e, não resistindo à curiosidade, pergunta a uma mocinha quem é aquele sujeito que está causando frisson na garotada:
    - Ele é o Sorocaba, da dupla sertaneja Fernando & Sorocaba.
    A jornalista segura a risada e ironiza a oportunidade perdida de ser fotografada ao lado do, para ela, ilustre e famoso desconhecido.
    ********
    Segunda-feira, 10 horas da manhã, pitando um cigarrinho e conversando amenidades com o médico Pedro Maciel, sou abordado por uma senhora: "Nossa, que bom encontrá-lo aqui. Meu sonho de consumo é ter uma foto a seu lado; podemos fazer?"
    Antes que eu me refizesse da surpresa, ela cola o corpo no meu, se arruma debaixo de meu sovaco, passa o braço em minha cintura, entrega o celular para meu amigo e pede-lhe que faça o registro.
    Feita a fotinha, a loira sai toda serelepe, feliz da vida e entra no carro que estava a sua espera, deixando-me sem jeito, sem entender direito o ocorrido.
    Ao chegar a sua casa, a mulher chama a irmã e, toda satisfeita, mostrando imagem aberta do celular, anuncia: "Taqui, ó: consegui uma foto com o doutor Chicola!"
    Com o aparelho na mão, depois de analisar a selfie, a outra oxigenada diz: "Mana, esse não é o doutor Chicola não..."
    Ainda empolgada com a conquista e aborrecida com o questionamento da irmã, ela contra ataca: "Claro que é. Ele estava na saída da Junta Médica conversando com outro doutor..."
    "Mana, tenho certeza de que esse não é o Chicola..." E ante o olhar de dúvida e aborrecimento da irmã, observa: "Se bem que esse coroa da foto é bem mais bonitinho".

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    Volta, Pinduca!

    Minha infância foi muito rica. Diferente dessa garotada que vive presa a celulares, Aipades, Aipedes, Aipodes e outros Ais, éramos meninos de brincar na rua e de, antes de nos assearmos para dormir na rede, evitarmos que nossas mães vissem cortes e arranhões surgidos em braços e canelas e quisessem nos castigar com aquela pazinha embebida com Merthiolate. O cara que inventou Merthiolate devia ter parte com o Demônio.

    Em um só quarteirão da rua Alfredo Cruz, éramos mais de 15 crianças. Meus pais entraram com oito nessa contagem. Nossas brincadeiras eram puro desgaste de energia. Tomar banho no rio Branco, amorcegar carros que passavam por ali, roubar frutas em quintais alheios, esconde-esconde, caumôni-bói, bandeirinha, queimada, pelada... Às vezes, enquanto os dois animais descansavam e comiam o ralo capim das redondezas, roubávamos o carro de bois do seu Zacarias e, divididos em turmas, dávamos voltas pela Praça da Bandeira. Metade dos meninos puxava a carroça enquanto a outra metade fazia festa entre os fueiros do chassi do veículo. Depois, as turmas se revezavam.

    Nascido Wallace Walter, mas renomeado Pinduca, dos mais novos por ali, também participava dessas brincadeiras. Pinduca morreu na semana passada e, com a morte dele, vi-me lembrando de nossa infância.

    Certo dia, depois de muito pedalar, chegamos ao Lago dos Americanos, onde decidimos nadar até uma barraquinha construída lá no meio da água. Entre nós, com idade entre 12 e 13 anos, estava Pinduca, que ainda não tinha passado dos 10. Paulo, seu irmão mais velho, determinou que ele não ia enfrentar o desafio conosco.

    Depois das primeiras braçadas, demos conta de que o pirralho nos seguia. Paulo grita: "Pinduca, volta, isso não é coisa pra criança!!!" Teimoso, Pinduca fazia que não ouvia. "Pinduca, volta! Tu num vai dar conta não!" E Pinduca nem se tocava. No desespero, Paulo apelou: "Pinduca volta, porra..." E arrematou: "Pinduca, volta... Depois, tu morre e chega lá em casa chorando..."


    Sei que todos nós seguiremos o mesmo caminho. Apesar de sabermos que a morte é a única coisa certa nessa vida, não nos acostumamos com a danada. Pinduca morreu e, com sua partida, deixou a curuminzada da Alfredo Cruz chorando. 

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    Pai herói

    Quando Mariana ainda era minha única filha, eu gostava de deitar-me a seu lado e contar-lhe histórias para fazê-la dormir. Mas eu não me prendia a historinhas destinadas ao público infantil não e criava aventuras em que normalmente eu saía como herói. Lutei com ursos, tigres, onças, crocodilos, enfim, matei mais feras que o próprio Jim das Selvas.
    Um dia, contei-lhe que estava no Circo Orlando Orfei e, quando o domador sofreu um ataque de coração, vi-me obrigado a entrar no enorme engradado do picadeiro, apoderar-me da banqueta e do chicote do profissional desmaiado e enfrentar os enormes e bravos felinos até que o dono do circo surgisse para controlar a situação.
    Nunca imaginei que o Orlando Orfei, o maior circo em atividade na América do Sul de então, viesse a nossa cidade. Pois veio.
    Quando minha filhota, então com quatro aninhos, assistiu a anúncios da trupe, perguntou-me se "esse não era aquele circo em que eu tinha domado os leões". Confirmei, claro.
    Resolvi levar Mariana para assistir ao espetáculo circense. Na entrada, vi Orlando Orfei, vestido com reluzentes fraque e cartola, dando boas-vindas aos pagantes e resolvi encompridar minha heróica aventura. Afastei-me de minha filhota, cumprimentei o dono do circo e pedi-lhe, sem dar-lhe tempo para contestação, que, em seguida, respondesse positivamente às perguntas que eu lhe fizesse.
    Com Mariana nos braços, aproximei-me de Orlando Orfei e pergunteilhe se ele se lembrava do dia em que o domador desmaiou e eu tive que me virar para controlar os leões. O italiano deve ter sacado minha ideia, pois, com um sorriso maroto nos lábios, disse que "se lembrava sim".

    Atualmente, em reuniões de família, nos divertimos relembrando essas e outras histórias da infância de meus filhos. 

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    Bloco do pó e respeito pelos mortos

    Há quem reclame da demora de um Sedex entre o Sul-maravilha e Roraima. Não recla­mem. Houve um tempo em que um telegrama levava até oito dias para chegar a Boa Vista. Explico: em nossa capital, a agência dos Correios não dispunha de serviço de telegrafia; assim, os pontos e linhas do Código Morse eram recebidos em Manaus e, depois de impressos, eram enviados para o vale do rio Branco por aviões do Correio Aéreo Nacional, cujas aeronaves só nos visitavam uma vez por semana.

    Pouco antes do carnaval, minha mãe recebeu telegrama noticiando a morte de meu avô. Lembro-me do choro e da tristeza em nossa casa. Vovô Manoel morava no Ceará e minha mãe não o via há alguns anos.

    Alguns anos antes, meu pai e alguns amigos tinham criado o Bloco do Pó, que prota­gonizava o ponto máximo do período momesco em nossa capital. Nos três dias da festa pagã, os foliões subiam numa cafuringa e, ao som de trombone, tocado por meu pai - o maestro -, tuba, saxofone, bumbo, surdo, caixas e tamborins, saíam levando música, alegria e jogando muito talco sobre quem chegasse perto.

    No domingo de carnaval, papai saiu de casa logo depois do almoço. Sumiu. Lembro-me que ao final da tarde, a pé, mamãe, eu e alguns de meus irmãos voltávamos da missa de sétimo dia da morte de meu avô, quando, na esquina das avenidas Jaime Brasil e Getúlio Vargas, ouvimos acordes de "Moço, qual é o pó? Eu nunca vi homem de renda e filó..."; logo, apareceu a cafuringa com o Bloco do Pó. Meu pai, mais alto do que seus colegas de farra, fantasiado de maestro, desta­cava-se no meio da trupe.

    Mamãe, abaixou e cabeça e, olhando para o lado, tentava esconder as lágrimas que es­corriam em sua face.

    Lá pelas nove da noite, em casa, ouviu-se o barulho do trombone sendo pendurado no gancho onde estaria sempre pronto para qualquer eventualidade. Em seguida, meu pai, ainda de fraque e cartola pretos, todo sujo de talco, entrou na cozinha e, ao servir-se de água retirada de um pote, ouviu mamãe dizer:

    - Isso é uma falta de respeito, Pinheiro. É esse o exemplo que você deixa para seus filhos?

    Papai sentou-se, tomou um trago de uísque e respondeu com a cara maia lavada do mundo:

    - Neuza, eu, sendo o comandante, não podia abandonar o barco com meus marujos. .. - E antes que mamãe começasse a chorar, ele acrescentou: "Veja que nós não passamos nenhuma vez aqui pelo nosso quarteirão. Teve uma vezinha que, quando chegamos perto da esquina, eu, como maestro, ordenei que os instrumentos silenciassem". 

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    A garantia

    Médico à antiga, desses que procuram conhecer os pacientes a fundo. Com ele, uma consulta não leva menos de quarenta minutos. Psiquiatra conceituado e atencioso tenta viajar pela alma dos seus pacientes. Toda a sua vida acadêmica foi financiada com árduo trabalho como rádio-técnico em oficina de terceira categoria. Aliás, eletrônica sempre foi sua paixão.

    Era fim de tarde de sexta–feira quando doutor Jack Areh entrou numa mercearia e deu de cara com João Caporal que, há algum tempo, em crise maníaco depressiva, tinha feito uso dos serviços do psiquiatra. Durante conversa informal, o médico notou que a acompanhante do antigo paciente tinha o olhar perdido no espaço e agia como um robô.

    - Quem é esta senhora que está com você? – Perguntou. Ao saber que era dona Ambrozina, mãe de Caporal, ficou deveras preocupado e assuntou: "Sua mãe não está bem. Vejo que ela está apática, perdida, Algo estranho acontece com ela".

    - Ah, doutor, mãeinha tem me preocupado muito. Nossa vida não tem sido fácil. Derna o início do ano ela vem levando tanta porrada que azuretou. – Caporal enxugou lágrimas, assoou o nariz e continuou: "Em fevereiro, painho teve um enfarte e bateu a caçuleta; no início de março, Edilzanete, minha irmã mais nova, apagou na mesa de parto; o menino dela, Desmoillysson Jerry, morreu de caganeira três meses depois: os pessoal dizem que foi infecção hospitalar. De lá pra cá, mãeinha ficou assim, meio alesada. Ela fala pouco, se esquece de tudo, não sorri. Ela tá só sendo levada pela vida...

    Doutor Jack Areh dirigiu-se à mãe de Caporal e, depois de fazer-lhe perguntas e considerações sacou o receituário, escreveu algo naquela caligrafia que nem médicos conseguem ler, entregou o papel ao antigo paciente, repousou a mão no ombro dele e, usando o linguajar dos técnicos em eletrônica, sentenciou:


    - Olha, Caporal, nós vamos curar sua mãe. Ela vai tomar estes medicamentos aqui da receita e eu garanto que em uma semana o comportamento da velhinha vai mudar. Eu dou garantia: se ela não sarar nesse espaço de tempo, pode trazê-la de volta que o defeito pode ser nouto circuito, mas nós vamos fuçar até descobrir. Garanto-lhe que a velhinha vai ficar tinindo. 

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    Os meninos da cobra (ou a cobra dos meninos)

    Início dos anos 1960. Boa Vista era uma cidadezinha pacata com menos de 20 mil habitantes. Esse era um tempo em que, por aqui, ainda nem sequer existia televisão e a meninada inventava suas brincadeiras. E que brincadeiras.

    Nossa casa ficava na rua Alfredo Cruz, sub-esquina da Getúlio Vargas - uma das únicas avenidas calçadas e asfaltadas da capital do Território Federal. Moradores do Rói Couro (hoje bairro de Sâo Pedro) usavam a Getúlio Vargas em seus deslocamentos para a Jaime Brasil, onde ficava o grosso do comércio e o Cine Teatro Boa Vista, que, ao lado de jogos de basquete, vôlei e futebol de salão, na Praça Capitão Clóvis, era das poucas diversões noturnas do lugarejo.

    Eu e meus dois irmãos, à guisa de diversão, cortamos uma câmara de ar de bicileta, amarramos uns 30 metros de linha que usávamos para empinar papagaio na parte do pito e, de noite, lá pelas 10 horas, por volta da hora em que terminava a sessão de cinema ou se encerrava alguma disputa na pracinha de esportes, nós jogávamos o artefato do outro lado da via e, escondidos por detrás de um muro, puxávamos o artefato que apavorou muita gente.

    Dali, ríamos dos sustos que os passantes levavam. Lembro-me de seu Malaquias, que, assustado, quebrou um guarda-chuva ao querer matar a cobra. Não tenho certeza, mas dizem que, com medo da falsa jiboia, João Funga-funga borrou o fundo das calças e, por causa do vexame, perdeu a namorada.

    E assim foi durante muito tempo. Enquanto nossos pais e vizinhos conversavam amenidades em fente de casa, eu, Agenor e Anchieta sacaneávamos inocentes passantes.

    Numa noite de sábado, uma mulher gestante, amparada pelo marido e uma comadre, vinha do Rói Couro dirigindo-se à Maternidade de Boa Vista, que ficava ali pertinho, na rua Coronel Pinto, onde hoje está a Seplan. Irresponsáveis, nós não demos descanso à cobra. O trio de passantes entrou em pânico, a gestante, segurando a barriga, curvou-se e, gritando de dor, contorcia-se no chão.

    As pessoas que conversavam na frente de nossa casa correram para socorrer a buchuda. Meus pais e uma nossa vizinha socorreram a futura mamãe e levaram-na até o hospital, onde ela já entrou parindo seu rebento.

    Algum tempo se passou, mamãe voltou pra casa, investigou o caso e, com sábia investigação, chamou seus anjinhos à responsabilidade. Com alguns bolos de palmatória em nossas mãos e cortes de tesoura na câmara de ar, mamãe deu fim ao réptil que, durante algum tempo, assombrou quem passasse pela avenida Getúlio Vargas. 

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    Autoridade de primeira viagem

    No início da década de 1960, depois de acirrada disputa eleitoral, a chapa apoiada pelo governo lograra preencher a única vaga na Câmara dos Deputados destinada ao Território Federal de Roraima.
    O deputado era homem culto, inteligente, falava inglês fluentemente, conhecia alguns países, tinha muitas posses; o suplente, semi-analfabeto, era simples pecuarista - desses que começaram sendo vaqueiro de algum grande produtor e, com o sistema de ganhar uma cabeça de rês a cada quatro nascidas, estabelecera seu rancho e se tornara líder rural.
    Com a "Redentora", de 31 de março de 1964, o deputado, que alimentava simpatia pelo regime imposto por Fidel Castro, em Cuba, foi cassado pelos militares. O suplente assumiu a vaga.
    Sentindo-se importante, o peão que, agora, havia-se transformado em autoridade, viu-se obrigado a trocar suas calças e camisas de brim desbotado e puído por ternos de gabardine. A patroa caprichou em vestidos feitos com seda oriental trazida da então Guiana Inglesa, rendas do Ceará, fustões, tafetás, essas modas.
    Depois da posse e de cometer algumas gafes em Brasília, o casal voltava, pela primeira vez, para a pacata Boa Vista. Naquele tempo, os DC3s da Cruzeiro do Sul pernoitavam em Manaus para descansar tripulação, esfriar motores e seguir viagem no dia seguinte.
    Hospedados no Hotel Amazonas, deputado e esposa se encantavam com tanto luxo e mordomia.
    Antes de entrar no Aero-Willys da Representação do Território Federal de Roraima que levaria o casal até o Aeroporto da Ponta Pelada, a esposa do parlamentar resolveu visitar lojinha de artesanato que vira na frente do imponente e famoso hotel. Entrou e encantou-se com uma bolsa que a atraíra no mostruário.
    Ao ver a aproximação do jovem e bem vestido atendente, madame, para mostrar que era gente bem, resolveu caprichar no vernáculo, pegou a bolsa e perguntou:
    - Moço, essa bolsa é de couro de crocodalho?
    Rindo, o vendedor respondeu-lhe:

    - Não. É de couro de jacaralho. 

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    Controlador de voos

    O único psiquiatra do lugarejo aposentou-se e passou a missão para doutor Germano Duna, jovem médico que exerceu a profissão por muito tempo na Clínica Santa Genoveva, no Rio de Janeiro. Este, com sede de fazer seu pé de meia e voltar para as praias da Cidade Maravilhosa, trabalhava mais do que seria recomendável.

    Numa sexta-feira de lua cheia, o plantão tinha sido dos infernos. Doutor Germano, depois de atender cinquenta e dois pacientes, tirou o jaleco, jogou-o sobre o assento traseiro da reluzente L-200 e dirigiu-se à sua lanchonete preferida para um lauto sanduíche aberto. Pediu uma cerveja gelada e ouviu o toque do celular antes que terminasse o primeiro copo. Olhou o aparelhinho com raiva e atendeu à ligação vinda do Pronto Socorro:

    - Doutor, venha urgente ao PS. Acabamos de receber uma paciente sua em alta crise...

    - Ô, Aparecida, dá um tempinho... Vou só comer um sanduíche pra forrar o estômago... Chego aí em meia hora...

    - Doutor, a coisa tá feia... É melhor o senhor vir logo e deixar o sanduba pra depois... 

    - Vocês não podem administrar isso aí? Apliquem um sossega-leão na paciente... Logo, logo, estou chegando...

    - Não dá, doutor... Ela tá muito agitada... Além do mais, ela tá com mania de querer voar..

    Doutor Germano largou a garrafa de cerveja quase cheia, chamou o chapeiro e pediu que não tivesse pressa com seu pedido, "pois ele tinha que sair para atender a um chamado". 

    O Pronto Socorro estava um verdadeiro caos. Tantos eram os necessitados pelo corredor, que parecia ter tido um ataque terrorista na cidade. Doutor Germano entrou tentando identificar sua paciente no meio daquela multidão, mas não logrou êxito. Decidiu, então, valer-se de sua figura impoluta e de sua voz tonitruante:

    - POR FAVOR, ESTOU À PROCURA DE MARIA LUÍZA, UMA PACIENTE MINHA QUE ESTÁ COM VONTADE DE VOAR!

    Uma morena parruda, trajando decotado e colante vestido vermelho, levantou-se e, dirigindo ao médico os olhos arregalados que pareciam querer sair das órbitas, apresentou-se:

    - Sou eu doutor...

    - Me acompanhe, por favor...

    Nisso, levantou-se um homenzinho mirrado, atrás de óculos com espessas lentes de grau e falou:

    - Doutor, ela é minha esposa... Será que eu posso ir junto?

    Doutor Germano encarou o casal, esboçou um sorriso maroto e pilheriou:

    - Ah, você é o co-piloto? - E abrindo a porta do consultório, arrematou: "Tá bem, entrem os dois aqui no meu hangar para que a gente prepare o plano de voo". 

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    Miscigenação passarinheira

    Estou ficando velho. Ainda bem que a velhice traz coisas boas. Com o passar dos anos, tenho me voltado um pouco mais para a natureza. Eu, que já matei alguns periquitos, muitas maracanãs, dezenas de papagaios, que engoli corações de beija-flores (só pra ficar ponteiro com a baladeira) e torrei corações de anuns pra fazer simpatia na esperança de traçar meninas, passo a cuidar de passarinhos.

    Nessa minha fase passarinheira, a quantidade de canários-da-terra em Boa Vista atrai minha atenção. Eu que, com visgo de jaca, já cacei bem-te-vis, sanhaçus, tangarás, curiós, chicos-pretos, sabiás, não me lembro nunca de ter caçado um desses canarinhos que vemos em numerosos bandos pela cidade de Boa Vista.

    Durante alguns dias, acompanhei o início da vida de quatro desses bichinhos – do nascimento ao primeiro voo ganhando o mundo. Até andei preparando terreno para que os canarinhos e seus pais se fixassem em meu terreno, mas eles partiram sem ao menos dizer adeus.

    De repente, descubro o motivo de tantos canários-da-terra em Boa Vista. Descubro até que esta raça de passarinhos, com grande capacidade de reprodução, já existia por aqui, só que em menor quantidade. 

    Contaram-me que, nalgum dia do século passado, a Polícia Federal deteve um homem com mais de 4 mil desses passarinhos acondicionados em lugares impróprios. Tráfico de animais silvestres. 

    O criminoso foi preso e os passarinhos foram aprisionados. Das mais de 4 mil, só metade das aves estava viva. Sem lugar apropriado para mantê-las até que a burocracia autorizasse sua devolução para a Venezuela, de onde eles haviam sido capturados, fiscais e burocratas buscavam uma saída.

    Com o passar das horas, passarinhos iam morrendo. No segundo dia, mais de mil sucumbiram à fome, à sede e às condições do cativeiro improvisado em que se encontravam. Eugênio Thomé, que fazia parte do conselho passarinheiro – grupo que decidia sobre o futuro dos canários-da-terra -, propôs soltar a passarinhada e torcer para que eles se adaptassem aos ares roraimenses. Até porque, no Estado, havia incidência desse tipo de aves. 

    Um integrante do conselho combateu a ideia de Thomé. Disse que os canários venezuelanos, apesar de muito parecidos, apresentavam diferenças se comparados com a espécie brasileira: os pássaros estrangeiros, por exemplo, eram dois centímetros mais compridos do que os pássaros brasileiros. 

    Thomé contra argumentou: "Olha, mano. O meu amigo Waldemar Johanson, alemãozão com mais de dois metros de altura, casou-se com uma caboquinha que não mede sequer um metro e sessenta e, dessa união, nasceu um menino bonito e saudável. Vamos soltar os canarinhos venezuelanos". As aves foram soltas e se integraram à natureza.

    Sabendo dessa história, defendo a tese de que esses canarinhos lindos, nascidos da miscigenação entre aves brasileiras e aves venezuelanas, recebam nome científico de Eugenius Thomenandus Canariuns. 

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    Sem pressa

     No edifício em que minha mãe mora, em Brasília, vivem muitos idosos. Sob os pilotis, é comum encontrar cabecinhas brancas de 60, 70, 80, 90 anos. Minha mãe acaba de completar 95; acho que ela é a decana do bloco. 

    De repente, a notícia: "Dona Maria do 104 morreu". Minha mãe chamou Célia, uma de minhas irmãs, e pediu-lhe companhia para prestar uma última homenagem à vizinha. 

    Com velório marcado para a partir das 15h do dia seguinte, mamãe teria tempo de ir ao cabeleireiro para arrumar as madeixas: "Sou velha, mas não quero que me achem feia", diz sempre a nonagenária.

    Em Brasília, velórios são conduzidos nas muitas capelas destinadas a essa finalidade dentro do cemitério e é normal que pessoas chorem uns três ou quatro mortos errados até chegarem ao defunto querido.

    Antes de chegar à capela em que o corpo de dona Maria se encontrava, Célia e mamãe passaram por seis velórios diferentes. Com tanta confusão, minha mãe, ficando cansada, já começara a reclamar ante a possibilidade de sair do cemitério sem que a finada "tivesse visto" a presença dela naquela derradeira reunião.

    No endereço correto, o som de um violino trouxe paz ao coração de Neusinha e tranquilidade à alma de Auricélia, que já estava preocupada com as preocupações de sua velhinha.

    Tocada pelas finas notas musicais e vendo um violinista tão alinhado, tão circusnpecto, mamãe segredou ao ouvido de Célia.

    - Tá vendo que coisa linda, minha filha? Pegue o contato desse rapaz e guarde o endereço com você. Quero que ele toque no meu velório...

    A música foi interrompida por algumas orações, alguns cânticos, e o corpo de dona Maria foi levado até seu novo endereço. O padre teceu alguns elogios à defunta que, finalmente, como cantava Teixeirinha, foi "tapada com terra fria".

    Dali, Célia acomodou mamãe no carro e, quando chegaram ao portão do Campo da Saudade, minha irnã, contrariada, freou e comunicou:

    - Ih, mamãe... Temos que voltar. - Por que, minha filha?

    - Esqueci-me de pegar o cartão com o endereço do violinista...

    - Volte não, minha filha. Você pode fazer isso depois. Tenha certeza de que eu não tenho nem um pingo de pressa.
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    O incompreendido

    Conheço muitos mãos-de-vaca, mas José de Ribamar, maranhense que chegou aqui em terras macuxis na década de 1980, se destaca em qualquer disputa dentro dessa modalidade.

    Ribinha, além de pão duro, é metido: não dá esmola, não fala com preto nem carrega embrulho. Apesar de toda essa empáfia, o codoense frequenta apurado meio social e, mesmo sendo mais grosso do que cano de passar bosta, consegue namorar meninas de boa procedência.

    Ultimamente, Ribinha tava pegando Rosa Maria, loirona monumental, única herdeira de dezenas de imóveis espalhados pela cidade de Boa Vista.

    O namoro empirulitou-se com os primeiros raios solares de 2019. Explico:

    Faz tempo, Rosa Maria dizia ao namorado que sonhava com uma noite especial: motel de primeira, lençóis de cetim e despertar com um lindo café da manhã servido na cama.

    Apaixonado, o maranhense decidiu realizar o sonho da amada na passagem de ano. Às dez e meia da noite do dia 31 de dezembro, ele parou a moto na porta de Rosa, disse-lhe que tinha uma surpresa e pediu que a amada subisse na garupa da Bizz.

    O casal tomou o rumo oeste da cidade. Em bairro periférico, Ribinha parou numa mercearia e, de lá, veio com duas sacolas plásticas que foram acomodadas debaixo do selim da moto. Dali, seguiram até a pousada Vai Quem Quer.

    Ao ver a entrada do local, Rosa Maria ainda pensou em pedir pra voltar. Capitulou. Sabia que o namorado era mão-de-vaca e, cheia de tesão, resolveu arriscar.

    O casal assistiu à queima de fogos transmitida pela TV, queimou muito fogo durante a madrugada e adormeceu. Zé com o peidante voltado para a amada.

    Na manhã do dia 1o, por volta das cinco da matina, Rosa Maria acordou e viu Ribinha abrindo as sacolas que havia trazido sob o selim da Bizz. De lá, o maranhense retirou uma lata de leite Ninho, um pacotinho de Nescafé Tradição, um pacote de cream crackers, uma embalagem de margarina, um saco com um quilo de açúcar, copos e colheres descartáveis.

    O ficante de Maria Rosa botou o rancho sobre a mesa, ligou para a recepção e pediu que mandassem uma chaleira com água morna. URGENTE!

    Ribinha voltou-se para a namorada e, ao vê-la acordada, recomendou:

    - São cinco e dez, meu amor. A gente toma café e vai-se embora, pois a promoção de seis horas por R$ 35 vence daqui a 50 minutos.

    De tarde, no bar Quebra Molas, sem entender nada, Ribinha se lamentava:

    - Eu fiz tudo o que Rosinha queria e ela me deu um pé na bunda...

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    Assim caminha a humanidade

    Sebastião Coivara cuidou do meu jardim por muito tempo. Mais do que relacionamento patrão-jardineiro, estabelecemos vínculos de amizade e confiança. 

    Coivara me telefonou. Estava acamado (ou seria arredado?) e precisava de minha ajuda. "Venha rápido, por favor, meu patrãozinho".

    Depois de muito rodar pelo bairro, localizei a cerquinha de madeira. Desci do carro, levantei a tramela do portão e, lá no fundo do quintal, debaixo da copa de frondosa mangueira, Coivara, braço na tipoia, todo pintado com Mertiolate, Iodo ou Mercúrio Cromo, jazia numa rede suja e puída. É, ele estava arredado. Assustei-me.

    - O que foi isso, companheiro?

    Sebastião abriu o olho direito – o esquerdo estava cerrado por enorme hematoma – e balbuciou:

    - Fui atropelado, patrãozinho...

    "Como? Quando? Onde?", perguntei. Meu subconsciente estava preso a princípios de matéria jornalística. Coivara detalhou o acidente.

    - Vamos atrás do fela-da-puta que lhe fez isso. – Propus revoltado.

    - Não precisa, patrãozinho. O cara me socorreu, me levou pro Pronto Socorro e me trouxe pra casa. Todo santo dia, ele vem me visitar...

    Elogiei o comportamento do motora. Sebastião continuou:

    - O problema é que roubaram minha magrela e o rancho que eu trazia. Levaram todas as compras do mês, patrão...

    - Como?

    - Quando fui atropelado, uma porrada de gente cercou o lugar. O motorista me socorreu de pronto. Quando ele me colocava no carro, olhei pra minha bicicleta e o saco com as compras. Ia pedir pro Pedro Bandalha guardar minhas coisas, mas, nisso, um rapazinho de boa aparência gritou: "Pode deixar, seu Coivara. Eu sei onde o senhor mora e entrego a baique e suas compras na sua casa". Tou esperando até hoje...

    E, com tristeza, concluiu:

    - Já faz uma semana que eu tou nessa rede e nada da magrela ou do rancho...

    ....

    Assim caminha a humanidade. Usando título dado a filme estrelado por James Dean, chego à conclusão de que o desrespeito pelo ser humano e apego pelas coisas materiais vêm aumentando. E muito.

    Feliz Natal! 

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    Aroldo Pinheiro

    A vingança

    Desde que fora flagrado beijando uma das funcionárias da escola, o padre diretor passou a perseguir Abigobaldo. Tinha que manter o garoto sob controle. Tinha que mostrar quem era o dono do pedaço. Tinha que manter o menino de boca fechada.

    Usando de seus poderes, padre Genésio aplicou castigos e suspensões sem motivo ao aluno que, por essas coisas do destino, descobrira que, debaixo da batina do sacerdote, rolava tesão por mulher, como rola em qualquer homem normal.

    Abigobaldo que, sejamos sinceros, não era lá flor que se cheirasse, se consumia imaginando uma maneira de vingar-se do padre ditador e safado.

    Certa tarde, ao sair para tomar água, Abigobaldo viu a Vespa(*) do padre, solitária, à frente da cantina da escola. Ao constatar que aquela área estava longe do alcance da janela da diretoria ou de qualquer sala de aula, o menino decidiu que a hora da vingança havia chegado: cuidadosa e rapidamente aproximou-se do veículo sacerdotal, desconectou-lhe o cachimbo da vela de ignição, nele colocou um chumaço de papel e devolveu a peça a seu devido lugar.

    Ao fim das aulas, com alunos ainda no saguão do colégio, o padre ocupou seu lugar na motoneta e, depois de liberar o descanso, acionou o pedal de partida. Nada. Novo pisão no pedal eo motor do veículo não respondia. Mais um e nada.

    Vendo aquilo, o alunado voltou-se para onde estava o padre diretor e, silenciosamente, com sorrisos disfarçados, passou a torcer pela motoneta.

    Mais uma tentativa no pedal. Nada. A partir da quinta tentativa, alguém mais corajoso começou contagem exagerada. Dezessete... Dezoito... Dezenove... Vinte...

    O padre se irritava. Na face genesiana, a pele branca se avermelhara; os olhos estrábicos do sacerdote pareciam distanciar-se entre si cada vez mais.

    Padre Genésio apelou e, sem muito cuidado com a batina, resolveu tentar fazer a Vespa pegar no tranco. Engatou uma segunda, empurrou o veículo, nele montou, desceu a rampa do colégio, liberou o manete de embreagem, mas o motor da motoneta não respondeu. Alunos sentiam prazer assistindo ao insucesso do diretor.

    Carlos Casadio, professor de matemática e mecânico experimentado, veio em socorro do padre. Acionou o pedal de start do veículo duas vezes, abaixou-se, desconectou o cachimbo de vela, dele retirou o chumaço de papel, recolocou a peça em seu lugar e, na primeira nova tentativa, o motor da motoneta funcionou. "Isso foi mão de gente", acusou professor Caracará. O sacerdote, destilando ódio, xispando, tomou o rumo da Prelazia.

    Padre Genésio foi-se embora de Roraima, largou a batina, casou-se com uma mulher e morreu sem saber quem lhe aprontou a pegadinha.

    (*) Vespa - espécie de Scooter, da família das Lambrettas. muito usada nos anos 1960 

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    Aroldo Pinheiro

    Na paz do Senhor, graças a Deus

    Marieta entrou no banco. Trajava bermuda quadriculada, blusa estampada com flores multicoloridas e surradas sandálias de dedo, a gorda, com quartos muito largos, peitos enormes, que fazem inveja a muitas vacas holandesas, cabelos desgrenhados, retirou senha no equipamento eletrônico e, com dificuldade, por causa dos assentos muito estreitos, sentou-se para esperar a sua vez. 

    Gisélia, mirradinha, entrou na agência, retirou senha e, ao ver a conhecida, balançou a cabeça e sentou-se a seu lado.

    - Tudo bem, maninha?

    - Menina, eu agora estou muito bem. – E sem deixar a amiga falar, Marieta acrescentou: "Estou frequentando a Igreja Paliativa de Jesus Cristo e, lá, encontrei a paz. Graças ao pastor Ezequiel, deixei de ser aquela mulher pessimista e intolerante que eu era... Aprendi a aceitar os desígnios do Senhor e dar Graças a Deus pelas coisas boas e coisas ruins que me acontecem..."

    O toc-toc de saltos contra o piso anunciaram uma moça bonita, com brilhantes cabelos negros longos, bem cuidados, dentro de insinuante peça única, branca, colada ao corpo. A morena chamava a atenção de todos que ali se encontravam. Aquela fada de revistas masculinas encostou-se na coluna próxima à bateria de caixas e dedicou-se a ver mensagens e posts no celular de última geração. 

    Marieta cutucou Gisélia com o cotovelo e, baixinho, determinou: "Essa quenga não vai ser atendida na minha frente não". 


    Gisélia fez bico de desdém, sacudiu a cabeça e acrescentou: "Se ela tem alguma deficiência, deve ser falta de vergonha. Como é que ela sai de casa com uma roupa escandalosa como essa? A xana parece que tá querendo pular pra fora" 

    O painel eletrônico anunciou: "Senha 107; caixa 3". A morenaça olhou em volta, retirou o apoio do corpo da perna esquerda para a perna direita, conferiu o celular, sorriu e abandonou-se nas mensagens. Marieta, apreensiva, murmurou um "Rum" desafiador. 

    Ao passar pelo local, o gerente da agência abriu os braços e exclamou: "Martinha!!! Que prazer. Venha à minha mesa para um cafezinho!?" O bancário e aquele pedaço de mau caminho seguiram para o birô da direção do banco.

    Morrendo de ódio, Marieta falou para que todos ouvissem: "Só vai ser atendida antes de mim porque eu não estou vendo". E voltando-se para Gisélia: "Não sou de desejar o mal pra ninguém não, mas essa vaca vai pegar uma doença que vai deixar ela seca e acabada só pra deixar de ser metida a besta". 

    E, não satisfeita, arrematou: "E tenho fé em Deus que esse gerentezinho de merda também vai ter o que o Diabo tem reservado pra ele..."


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    Aroldo Pinheiro

    O ocaso de um homem (e de uma mulher)

    Roraimense, nascido em família humilde, ele enfrentou dificuldades até formar-se engenheiro civil em Belém, num tempo em que, para chegar à faculdade, macuxis tinham que se aventurar em centros maiores. 

    De volta à sua cidade natal, montou firma construtora e, por meio de obras públicas, visão empreendedora e sorte, tornou-se homem rico.

    Vaidade e sonho de fazer algo pelo seu lugar de nascimento levaram-no à política. Ungido por poderoso e querido político, não foi difícil chegar a governador. 

    Usando meios não muito republicanos e abusando de populismo, criou seu grupo de seguidores que o levou a segundo mandato. 

    Dali, picado pela mosca azul, pensando em degrau mais alto, tentou chegar ao Senado Federal. Lá não conseguiu chegar. 

    Passados alguns anos desde a tentativa inglória, sonhou voltar ao comando do Executivo estadual. As garras da Justiça, entretanto, surgiram para atrapalhar seus planos. Depois de chicanas e fugas, recolhido a prisão domiciliar, teve ideia de retomar o poder por meio da esposa. Lançou-a candidata e, depois de acirrada disputa eleitoral, fê-la governadora. 

    Desde o início, sabia-se que a administração da patroa não seria nenhuma brastemp. Cercada por parentes e incompetentes, ela entra para história como o que poderia ter havido de pior para governar Roraima. 

    O poder cega. Sem enxergar a realidade, a despeito de pesquisas, a governadora partiu para tentar reeleger-se e, assim, continuar oferecendo condições para que parentes, agregados e apaniguados continuassem mamando nas, agora, muxibentas tetas do erário.

    Colhe-se o que se planta. As urnas trouxeram votos suficientes para que a governadora amargasse humilhante terceiro lugar, tirando-lhe o sonho de disputar, de acordo com a legislação, um segundo turno. 

    Contam que, no dia da apuração dos votos, quando viu que os números lhe eram contrários e não levariam a chapa à disputa final, a governadora aproximou-se de seu candidato a vice e, depois de sorver lauto gole de vinho, tirando o corpo da reta, humilhou o companheiro derrotado:
    - Doutor, se eu soubesse que você era tão ruim de voto, eu teria escolhido outra pessoa para essa batalha.

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    (Nota do autor: qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas não terá sido coincidência)

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    Aroldo Pinheiro

    Juiz ladrão

    Quase todo cidadão boa-vistense com mais de 50 anos de idade conheceu Áureo Cruz. Nem que seja de ouvir falar. Elegante, galanteador, Áureo era uma espécie de príncipe no reino da Macuxilândia. 

    Nascido de família abastada, as poucas vezes em que trabalhou foram para tirar algum proveito social ou investir em nova paquera. Áureo, entre outras coisas, foi diretor e locutor da Rádio Difusora Roraima. Apaixonado por esportes, fazia parte da Federação Roraimense de Futebol e do quadro de árbitros local. Ele também era torcedor fanático do Atlético Roraima Clube. 

    Nalguma tarde dos anos 1960, Estádio João Mineiro lotado: bem umas 30 pessoas ocupavam o palanque coberto de zinco; umas 80 se aboletavam no alambrado de madeira que isolava o campo de terra. De terra não: de barro. Naquela época, não existiam gramados em Boa Vista. O povo esperava o início do clássico: Baré X Roraima. Naquela época, só havia dois clássicos no território: Baré X Roraima ou Roraima X Baré.

    O primeiro tempo da partida terminou zero a zero. O segundo seguia modorrento, enquanto os atletas suavam a cachaça ingerida na noite anterior. Estavam mais pra tomar litros de água do que pra correr atrás da bola. O garoto que tomava conta do placar cochilava. Aos 32 minutos, Roberto recebeu um lançamento e, de trivela, chutou contra a meta guardada por Guilherme. Mário Rocha despertou e trocou um dos zeros pelo número 1. 

    Com o Baré ganhando de um a zero, Áureo Cruz, o árbitro, se desesperou. Ameaçou até expulsar o bandeirinha, porque este não tinha marcado o off side¹. Fim do primeiro tempo. 

    Da reposição de bola, depois do gol engolido por Guilherme, até os 45 minutos regulamentares, a equipe alvi-negra prendia a bola e administrava a vitória. A torcida festejava, antecipadamente, a conquista do troféu Governador do Território. 

    Quarenta e seis minutos. O árbitro, sem encarar o público, deixava a bola rolar. Quarenta e sete, quarenta e oito, quarenta e nove, 50 minutos... Abdala Fraxe ameaçava invadir o campo. Aos 57 minutos, Tracajá roubou a pelota do center half² barelista e, morrendo de cansaço, com meio metro de língua para fora da boca, chutou contra a meta de Zé Maria. Chute chocho. O goleiro escorregou, caiu e a bola entrou. O árbitro sorriu, deu um pulo com a mão fechada para cima para, em seguida, recolher a redonda e apitar o fim da partida. Pronto. A final do torneio ficou transferida para o próximo domingo. 

    Protegido pelos guardas territoriais, Maxixe, Duca, Coivara e Cento-e-seis, o juiz cruzava o portão do estádio sob protestos da torcida do Baré, quando Antônia Mariê aproximou-se de Áureo, meteu-lhe o dedo na cara e disparou:

    - Juiz ladrão!!!

    Áureo, com empáfia, antipatia, imponência, prepotência e ironia, respondeu à torcedora: "O juiz pode até ser ladrão, mas é soberano".

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    Aroldo Pinheiro

    O tenente e as medalhas

    Criado em 1943, o Território Federal do Rio Branco recebia governadores escolhidos no Distrito Federal. No início da década de 1960, o novo governador trouxe, em sua equipe, um tenente que, na função de ordenança, fazia tudo o que seu mestre mandava. Insistente e persistente, tenente Palma Lima conseguiu ser nomeado prefeito de Boa Vista. 

    Palma Lima era apaixonado pelo Exército e tinha verdadeira adoração pela farda verde-oliva. Usando sempre impecável uniforme engomado e vincado, sapatos tão brilhantes que refletiam a luz do sol, óculos Rayban – independentemente do local e da hora do dia –, o tenente gostava de desfilar entre sua moradia, na Praça do Centro Cívico, a residência governamental, na avenida Jaime Brasil, e o Palácio do Governo, que ficava na esquina da rua Coronel Pinto com a avenida Getúlio Vargas. Narcisista ao extremo, ele imaginava que a população o admirava da mesma maneira que idolatrava os astros do cinema americano daquele tempo. 

    No peito, Palma Lima carregava muitas medalhas. Até hoje, não sei onde nem como o militar conseguiu tantas comendas. Diziam até que ele comprara alguns daqueles enfeites. 

    Na cidade, a empáfia do militar tornou-se motivo de piada e deu origem a algumas expressões. Se um cidadão comparecia muito elegante a qualquer acontecimento, alguém comentava: "Tu estás mais bonito do que a farda do tenente"; se uma mulher surgia com brincos, exagerados cordões e pulseiras de ouro, ouvia: "Tu estás mais dourada do que o peito do Palma Lima". 

    O tenente sentia tanto orgulho da farda que fazia questão de pendurá-la na janela de seu quarto no Hotel Boa Vista, hoje, Aipana Plaza. Com as medalhas cuidadosamente viradas para a entrada do estabelecimento, claro.
    Exonerado o governador, Palma Lima deixou Boa Vista. 

    Certo dia em Manaus, lanchando na Sorveteria Siroco, olhei para o lado e vi, na janela de quarto térreo do pequeno Hotel Ideal, uma jaqueta verde-oliva bem passada, bem vincada. Dezenas de medalhas naquela peça de roupa chamaram minha atenção. Pedi a conta e assuntei com o garçom:

    - Você sabe o nome do militar que mora naquele apartamento?

    Com sorriso maroto, o rapazola me respondeu:

    - Quem mora aí é o Tenente Medalhinha. – E arrematou: "Toda tarde, ele se fantasia de general e faz plantão na esquina pro povo admirá-lo".


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    Aroldo Pinheiro

    A deseleitora

    João Feitosa, empresário bem sucedido, vaidoso, resolveu entrar para a política e candidatou-se a deputado estadual. A convenção que aprovou o nome do comerciante trouxe também dezenas de pessoas que todos os dias amanheciam à sua porta com pedidos que, talvez, se transformassem em votos. Pede-se de tudo: pagamentos de contas atrasadas, sacos de cimento, botijas de gás, pneu de bicicleta, passagens de avião e de ônibus, dinheiro para medicamentos, roupa para a filha desfilar, equipamento para prática de esportes, dinheiro para festa de quinze anos...

    Sebastião Neto, pidão juramentado, acordava cedo e saía visitando candidatos e, deles, tomando dinheiro que, prometia, pagaria com dezenas de votos que tinha sob seu controle. Com o saldo bancário minguando na mesma proporção em que via suas possibilidades de ser eleito caírem, João Feitosa resolveu tomar tenência: "Se eu não me segurar, termino liso e sem mandato". Às seis da manhã de uma sexta-feira, antevéspera do dia de votação,
    da janela de sua sala, João Feitosa viu que Sebastião, o pidão, o esperava. Dali, naturalmente, viria mais um pedido. DIsposto a dizer não, o candidato foi assediado quando botou o pé na garagem.

    - Pelas minhas andanças, vejo que o senhor vai ser o mais votado da nossa coligação, deputado.

    O candidato sorriu um sorriso amarelo e, antes de entrar na cabine-dupla, ouviu:

    - Deputado, sou muito agradecido pela passagem que o senhor deu para a minha mãe ir fazer tratamento de saúde em Manaus. As coisas não deram certo e mãeinha morreu, deputado. Vim aqui pedir que o senhor nos ajude a trazer o corpo de mãeinha para ela ser enterrada na terra onde nasceu, deputado.

    O candidato contra atacou:

    - Tião, a campanha está saindo bem mais cara do que eu pensava. Eu, na verdade, estou até arrependido de ter entrado na política.

    - Mas...

    - A grana acabou, Tião. Do meu bolso não sai mais nenhum centavo pra a merda dessa campanha.

    - Mas...

    - E tem mais, Tião: pra que que eu vou trazer sua mãe se a porra da velha nem vota mais?

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    Aroldo Pinheiro

    Despedida de parente inconveniente

    Uma prima, que ela nunca vira, telefonou dizendo estar correndo a Região Norte para conhecer familiares. Candidatou-se a passar um fim de semana em Boa Vista e pediu-lhe para organizar almoço de reconhecimento e confraternização.

    Passou o domingo, passou a segunda, a terça, e a prima foi ficando. E incomodando. Só desocupava a rede atada no meio da sala para refeições. Lavar louças não era o forte dela. Varrer, passar um pano? Nem pensar. A presença da parenta mexia com o humor dos ocupantes da pequena residência. Maria Júlia, dona do imóvel e responsável por manter oito dependentes, sentia calafrios quando pensava em chegar à casa e encontrar "aquela coisa" aboletada na rede. Apesar de indiretas, a prima não se tocava.

    Reunidos, outros parentes resolveram acudir. Forjaram notícia de que a mãe da prima estava doente e fizeram vaquinha para comprar a passagem de ônibus que levaria a indesejável de volta para Manaus.

    Na data marcada. Maria Júlia chegou do trabalho às 18h30, estacionou a moto em posição de saída, pois nem queria ver a cara daquela coisa antes de deixá-la na rodoviária. Quando presumiu que a parenta havia ocupado a garupa da Bizz, engatou marcha e xispou rumo ao terminal de ônibus. Percorreu a avenida Carlos Pereira de Melo, parou na luz vermelha do semáforo do Ibama, onde disse diversos nãos a venezuelanos que queriam vender bugigangas; na avenida Venezuela, subiu e desceu o viaduto e, depois de conseguir cruzar a rotatória do Trevo, chegou à rodoviária.

    Parou a moto e viu que a prima não estava na garupa. "Ai, meu Deus". Lembrou-se que, no início do viaduto, uma depressão na pista quase fê-la perder o controle do veículo; concluiu: "A prima deve ter caído da garupa naquele lugar". Voltou prestando muita atenção e nada. Fez, de novo, o percurso até a rodoviária, e nem sinal da parente inconveniente. "Vou voltar pra casa e pedir que o mano me acompanhar até o Pronto Socorro, pois Geiseslany deve estar lá", pensou. Com remorso.

    Ao dobrar a esquina de casa, viu Geiseslany, tranquila, mochila nas costas, conversando com a vizinha. Deu-se conta de que a prima nem tinha sentado no selim da Bizz.

    Àquela hora, o último ônibus para Manaus já tinha partido. Ana Júlia teve que aturar a prima por mais 24 horas e desembolsar por nova passagem, pois aquela, comprada para a noite anterior, perdera validade. 

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