Aroldo Pinheiro,  roraimense, comerciante, jornalista formado pela Universidade Federal de Roraima. Três livros publicados: "30 CONTOS DIVERSOS - Causos de nossa gente" (2003), "A MOSCA - Romance de vida e de morte" (2004) e "20 CONTOS INVERSOS E DOIS DEDOS DE PROSA - Causos de nossa gente".

    Aroldo Pinheiro

    O milagreiro

    Não me orgulho do feito, mas vou contar.

    O ano era 1969, finalista no Ginásio Euclides da Cunha, numa tarde em que faltei à aula, colegas meus tocaram o terror e vandalizaram a escola – coisa de meninos maluvidos. Enciumado por não ter participado do quebra-quebra, fui à escola e roubei, do hall de entrada, a imagem de uma santa que Padre Calleri havia doado para o GEC pouco antes de morrer. Joguei a santinha na carroceria de um caminhão toreiro que por ali passava naquela hora.

    Foi o maior Furdunço. Padre Mauro Francello, diretor do GEC, chegou à loucura e suspendeu aulas de toda a quarta série até que o herege, autor do roubo, aparecesse. Dois dias se passaram e tenente Carmélio Maia, nosso professor de Educação Física, fora designado para mediar o impasse e apontar o autor do pecado mortal.

    Para não prejudicar toda a turma, confessei o mal feito. Como pena, fui transferido para o turno da noite – em que só estudavam adultos –, tiraram-me o direito de recuperação se eu me saísse mal em alguma matéria e me obrigaram a assisti r missas diárias, às seis horas da manhã, durante um mês. Confessando e comungando. Ah, devolução da santa estava no pacote.

    Por meio de Cícero Cipó-de-fogo, caminhoneiro que conduziu a santinha para sua última viagem, fiquei sabendo que a imagem tinha sido jogada nalgum lugar, dentro da mata, na região de Mucajaí. Logo, o resgate seria impossível. Padre Mauro relutou, mas aceitou a justificativa para a não devolução.

    Imagino que nestes anos, a imagem da santinha tenha sido carregada por enxurradas para algum igarapé e, por correnteza haja chegado ao rio que banha o município de Mucajaí.

    Como minha mente é fértil, penso que, talvez, algum dia, pescadores lancem tarrafa no rio Mucajaí e, em vez de peixes, pesquem a imagem de polietileno da santinha que joguei na carroceria do Cipó-de-fogo. Dadas as facilidades que nossos homens têm de atribuir natureza sobrenatural a fatos comuns, imagino que, depois de resgatada por pescadores, padres construam um santuário para Nossa Senhora Aparecida de Mucajaí e deem início a um polo turístico de romaria em nosso Estado.

    Pronto, minha mãe: não me tornei padre como a senhora queria, mas, dependendo de acontecimentos, posso me tornar um milagreiro.

    Continuar lendo
      3741 Acessos
      0 comentários
    Aroldo Pinheiro

    Simpatia pra curar viadagem

    Na página 21 da décima-sexta edição deste jornaleco, anúncio dizia: "Simpatia pra curar viadagem - De manhã cedo, dê ao sofrente uma xícara de chá de mari-mari quente e forte, uma colher de sopa de pó de jatobá e duas xícaras de polpa de jenipapo. Ingeridos o chá, o jatobá e o jenipapo, o sofrente não pode tomar água nas duas horas posteriores. Antes do almoço, dê-lhe banho em mistura de água com folhas de cuia mansa. Na hora de deitar, o sofrente deve levar uma surra com cipó de fogo (doze cipoadas em cada uma das nádegas). Repetir o procedimento durante sete dias. Se no oitavo dia não sentir melhora, deixe o menino ser feliz do jeitinho que ele quer".

    O anúncio causou rebuliço e até gerou processo contra o Roraima Agora e seu editor. Graças ao bom senso de homens e mulheres que conduzem a Justiça roraimense, a ação judicial não prosperou.
    Há poucos dias, em casa lotérica, um rapaz simpático – em companhia de sua namorada – aproximou-se de mim, me cumprimentou e, dirigindo-se,à bela mulher que o acompanhava, disse: 

    - Meu amor, esse é o dono do jornal que me ajudou a deixar a viadagem de lado. - E, voltando-se para mim: "Seu Aroldo, minha mãe seguiu a receita publicada no Roraima Agora e, em uma semana, eu mudei meus hábitos e passei a gostar de mulher".

    O desconhecido encerrou:

    - Por sua causa, do seu jornal e da fé de minha mãe, eu passei a ver o mundo com outros olhos e conheci essa loira que vem me fazendo muito feliz. 

    Rimos. Ao interlocutor, não perguntei o nome. Sorridente, entrei no carro. Saí dirigindo feliz por ver que ainda existe bom humor na humanidade e que, com o anúncio, consegui o que queria: FAZER PESSOAS SORRIREM.

    Jujubes lemon drops tart lollipop brownie

    Cupcake Ipsum, 2015

    Gummi bears caramels donut carrot cake carrot cake chupa chups bonbon tootsie roll.

    Gummi bears caramels donut carrot cake carrot cake chupa chups bonbon tootsie roll.

    Gummi bears caramels donut carrot cake carrot cake chupa chups bonbon tootsie roll.

    Continuar lendo
      2102 Acessos
      0 comentários
    Aroldo Pinheiro

    Pai herói

    Nas quentes noites dos anos 1980, eu me deitava em rede com minha filhota Mariana, então por volta dos cinco anos de idade, para cantar, brincar, contar-lhe histórias e fazê-la dormir.
    Eu gostava de inventar histórias de aventuras nas quais eu era sempre o mais corajoso, o mais forte, o herói. Mariana adorava. 

    Matei ursos, hipopótamos, tigres, onças – pardas e pintadas -, jacarés - tinga e açu -, cobras. Para Mariana, Jim das Selvas e Indiana Jones eram fichinhas perto de seu pai-herói.

    Um dia, contei-lhe que, em Brasília, eu estava no Circo Orlando Orfei quando, durante a ato, o domador, na jaula, com três leões, sofreu um infarto. A plateia se apavorou. Da primeira fila, vendo que ninguém fazia nada para conter as feras, antes que elas fugissem e comessem uns dois ou três espectadores, eu pulei a mureta que separava o picadeiro do público, peguei o tamborete que estava caído no chão, recolhi chicote caído e, com gritos, gestos e estalos do rebenque conduzi os gatões de volta para a jaula e, assim, evitei uma grande tragédia.

    Empolgado com o brilho dos olhinhos orgulhosos de Mariana, disse-lhe que, antes do fim do espetáculo daquela noite, "seu" Orlando me agradeceu publicamente e que fui aplaudido de pé pelas mais de mil pessoas que tinham vindo ao circo naquele dia.
    ----
    Meses depois, inesperadamente, o Circo Orlando Orfei chegou a Boa Vista e eu prometi levar minha filhota a um espetáculo. De supetão, Mariana perguntou: "Não é aquele circo em que você salvou o domador?". Suspirei: "Meu Deus, ela se lembra de minha mentira".

    No domingo, quando cheguei ao circo para comprar ingressos, vi Orlando Orfei dando boas vindas ao público. Rapidamente, deixei Mariana com a moça que nos acompanhava, e me dirigi ao dono das lonas. Cumprimentei-o rapidamente e falei: "Seu Orlando, preciso de sua ajuda". E, sem dar-lhe tempo para responder, acrescentei: "Vou trazer minha filhota até aqui: tudo que eu perguntar, o senhor confirma?" Sem entender o que se passava, o italiano disse que sim. 

    Logo, com Mariana nos braços, eu perguntava para aquele homão vestindo elegante terno branco e alinhado chapéu panamá: 

    - O senhor se lembra de quando o domador teve um enfarte e eu salvei o pessoal do circo?

    - Lembro-me sim -, respondeu Orlando Orfei. 

    E era tudo o que eu queria: minha filha confirmara que seu pai era mesmo um herói.

    Não me sei quando Mariana descobriu que eu mentira muito na infância dela. Sei que gostava, pois, algumas vezes, ela pediu-me para contar minhas aventuras para Guilherme, meu neto.

    Continuar lendo
      3799 Acessos
      0 comentários
    Aroldo Pinheiro

    Vai sem medo, amigo

    "Mais um que se foi ou menos um pra contar a história?" Se ele pudesse comentar a própria morte, era assim que ele falaria. Irreverente, inteligente, língua afiada, Nelson da Costa morreu e há de fazer falta.

    Integrado à vida boa-vistense, entre uma e outra cachimbadas, o filósofo gostava de dizer: "Metade dos advogados não gosta de mim; a outra metade me odeia". Claro que era puro exercício de bom humor. Nelson da Costa era querido até por quem não gostava dele.

    De manhã, ao receber um bom-dia, o gaúcho de Santa Maria respondia: "Mal dia". Hoje, alguns de seus pares contavam essa e outras tiradas do Cachimbão.

    Hóspede mais antigo do Hotel Lobo D'Almada, na avenida Benjamin Constant, Nelson da Costa dizia que vivia sozinho, mas não era solitário. E justificava: "Não posso me sentir solitário num lugar onde conheço todo mundo e todo mundo me conhece".

    Ele não refrescava. Se inspirado, soltava o verbo. Lembro-me que, numa manhã ensolarada dos anos 1980, embusca de algo para incrementar o almoço de domingo, dirigi-me ao bar do Neir, onde Nelson da Costa fazia ponto. Desci de mãos dadas com meu filho, enquanto Maura, minha mulher permanecera no carro.

    Daniel, magrinho, sambudo, catarrento, não era nenhum ícone de beleza infantil. Agravante: naquele dia, eu havia raspado os cabelos de meu garoto e lhe aplicado permanganato de potássio para combater umas piras que haviam surgido em seu couro cabeludo.

    Ao ver-me com "aquela coisa" que eu chamava de filho, Nelson da Costa puxou uma cachimbada e gritou:

    - Aroldo, leva esse menino na LBA pra pegar umas latinhas de leite!

    Ouvindo aquele comentário, Maura, soltando fogo e fumaça, saiu em defesa da cria:

    - Quem é esse filho da puta que está falando mal de meu filho?

    Apressado, antes que a coisa virasse confusão, intercedi:

    - Calma, mulher... Esse é simplesmente o meu amigo Nelson da Costa.

    Em alguns de nossos encontros, essa história foi lembrada com gargalhadas.

    Alguns meses atrás, na última vez que me encontrei com Nelson da Costa – leitor assíduo do Roraima Agora – convidei-o para escrever crônicas mensais para este jornaleco. Nelson morreu sem me dar resposta.

    Sem choro, sem vela, como acho que ele gostaria que fosse, dou adeus a Nelson da Costa: "Tá com medo de morrer? Vai sem medo, amigo". 

    Continuar lendo
      2236 Acessos
      0 comentários
    Aroldo Pinheiro

    Deixar como encontrou

    Josinaldo entrou no serviço público logo depois de completar 18 anos. Aos 30, funcionário de carreira, bom partido, deu mole, apaixonou-se por amazonense faceira e, quando deu fé, estava dizendo sim à pergunta feita por padre Luizinho, na igreja de São Francisco das Chagas. 

    Com os quatro filhos já encaminhados, Josinaldo e Patrícia resolveram pôr fim ao casamento. Nada de problema. Puro desgaste. Agora, perto de aposentar-se, Josinaldo vivia muito bem vivida a vida de solteiro e dizia que "nunca mais juntaria panos de bunda com mulher nenhuma". 

    Certa noite, numa dessas arapucas do destino, Josinaldo encontrou-se com Hildete – morena jeitosa que sempre lhe despertara tesão. O casamento de Detinha não ia lá muito bem e os encontros com Josinaldo passaram a ser cada vez mais frequentes. 

    Uns dois meses depois de iniciado o affair entre o casal de sexagenários, o divórcio de Hildete com Irineu foi homologado. Na mesma semana, sem nem virar o colchão desocupado, Josivaldo mudou-se para os aposentos da namorada. 

    Tudo ia bem até quando Detinha começou a ter crises de ciúmes e perturbar o juízo de Josinaldo sempre que ele saía para encontrar-se com amigos. A marcação era cerrada, as brigas se tornaram caa vez mais constantes e nosso funcionário público decidiu dar um basta à situação. 

    Numa sexta-feira, depois do almoço, Josinaldo explicou seus motivos e comunicou à parceira que voltaria para o seu muquifo e sua paz. Hildete não botou dificuldades, mas fez uma única exigência. 

    - Olha, Naldo, quando nós começamos a sair, eu tinha um homem nesta casa. Irineu só foi-se embora daqui depois que você surgiu em minha vida... 

    E propôs: "Você pode até ir-se embora de vez, mas só depois que eu arranjar um homem pra ocupar o seu lugar". 

    Não tenho certeza, pois o povo fala muito. Em mesa de bar, ouvi que Josinaldo anda doido pra encontrar um namorado para a sua ex-namorada. 

    Continuar lendo
      3938 Acessos
      0 comentários
    Aroldo Pinheiro

    Tá chegando mais

    No embalo desses forrós safados e de muito mau gosto, empresário de visão resolveu adaptar imensa área urbana para que aficionados se entregassem aos bate-coxas e rela-buchos. Contratou um arremedo de banda forrozeira, quatro periguetes que se diziam dançarinas, espalhou algumas dezenas de mesas e cadeiras de plástico pelo terreiro, deu o nome de Fazendinha ao mais novo point da cidade e deixou o fuzuê comer no centro. 

    Lá, dava gente de todo tipo. Em visita ao point, Tonhão, um amigo meu, sentenciou: "Meu irmão, eu nunca tinha visto tanta gente feia por metro quadrado". 

    Daniela, acadêmica de Comunicação Social na Universidade Federal de Roraima, 20 anos, mocinha de muito bom gosto, gostava da balada, mas oferecia resistência a lugares que considerava suspeitos. Lugares que pudessem "queimar o filme", como ela dizia. 

    Certa noite de sábado, depois de a turma zanzar sem rumo, alguém deu ideia de encerrar a farra no Fazendinha. Dani pulou fora. 

    - Não, não, não. Faço questão de não ir a esse lugar. Além de muito arriscado, lá só tem gente feia... 

    Os amigos rebateram: 

    - Ei, menina, nós vamos em grupo. Ninguém vai nos incomodar... Lá tem tanta gente, que tu nem vais ser notada. 

    Para não se tornar desmancha prazeres, Dani capitulou. Retocou a maquiagem, ajeitou a roupa e, de braços dados com dois amigos, misturou-se ao resto da galera. Ao cruzar o portão do point, a moçoila ouviu o refrão da música de boas vindas: "O Fazendinha tá cheio de quenga/ E cada hora tá chegando mais.../ O Fazendinha tá cheio de quenga/ E toda hora tá chegando mais..." 

    Fazer o quê? A acadêmica se entregou ao ritmo apelativo e dançou entre as "outras" quengas até o dia amanhecer. 

    Continuar lendo
      3810 Acessos
      0 comentários
    Aroldo Pinheiro

    Chama que arderá para sempre

    "​Eu sou é madeira/ Em samba de roda já dei muito nó.../ Em roda de samba sou considerado,/ De chinelo novo brinquei Carnaval, Carnaval. Eu sou é madeira/ Meu peito é do povo do samba e da gente,/ E dou meu recado de coração quente/ Não ligo a tristeza, não furo eu sou gente. Sou é a madeira/ Trabalho é besteira, o negócio é sambar/ Que samba é ciência e com consciência/ Só ter paciência que eu chego até lá... Sou nó na madeira/ Lenha na fogueira que já vai pegar/ Se é fogo que fica ninguém mais apaga/ É a paga da praga que eu vou te rogar" (João Nogueira)

    Com letra e embalo da música de João Nogueira homenageio com saudade o Gilson, caboco querido, sangue bom, animado, espirituoso, brincalhão, bom de farra, amigo prestativo. 

    O peito de Gilson explodia com música de qualidade, com samba da gente. Carnaval era com ele. 

    Gilson era assim, não ligava pra tristeza, não furava: Gilson era gente. A notícia da morte do "Nó-na-madeira" – era assim que eu o cumprimentava, pois, para mim, essa música o identificava como bom intérprete de sambas bem humorados – pegou-me de surpresa. 

    Há algum tempo eu não me encontrava com Gilson. Não sabia que uma broca, em forma de câncer, estava corroendo essa madeira de lei roraimense. 

    Como boa madeira, Gilson se consumiu estalando, lutando contra essa doença que, covarde, invade organismos silenciosamente. 

    Gilson Leitão era nó na madeira, lenha na fogueira que já vai pegar e, se é fogo que fica ninguém mais apaga. 

    A chama de dor e saudade deixada por Gilson Leitão no coração de inúmeros fãs e amigos há de ficar acesa por meio das muitas horas de prazer e alegria que a companhia desse caboco nos proporcionou. 

    As noites roraimenses ficaram menos alegres. 

    Deus te guarde, Nó-na-madeira. 

    Continuar lendo
      2036 Acessos
      0 comentários
    Aroldo Pinheiro

    O companheiro de viagem

    Não gosto de conversar com estranhos. Quando viajo, levo comigo algumas revistinhas de palavras cruzadas e, para evitar papos desinteressantes, me entrego aos quebra-cabeças.

    Um belo dia, ali pelos anos 1980, de viagem para Brasília, com conexão em Manaus, entrei em Boeing 737 da Varig e, avião praticamente vazio, sentei-me em lugar marcado  numa das primeiras fileiras de poltronas.

    Abri minha revista e abandonei-me nas horizontais e verticais. Ou melhor: quase me abandonei na “Recreativa”, pois, logo, um homem diminuto, vermelho como tomate, trajando camisa oficial do Clube de Regatas do Flamengo, cumprimentou-me e se dizendo “feliz por ter com quem conversar durante a viagem”, aboletou-se na cadeira ao lado, apertou o cinto e abriu a boca em interminável monólogo. 

    Joãozinho Melo, figura carimbada entre roraimenses mais antigos, como bom descendente de paraibanos, não deu sossego a meus ouvidos durante os 60 minutos de voo que separavam Boa Vista de Manaus.

    Eu não conseguiria ser desatencioso com pessoa tão querida e inocente. Depois de fechar minha revistinha, passei a ouvi-lo – e concordar com tudo o que ele falava. Disse-me que estava indo a São Paulo para convenção do PMDB, partido sob cuja sigla ele se elegeu vereador de Boa Vista, “e, aproveitando a oportunidade, vou ao Rio de Janeiro pra ver o Mengão dar uma peia no Fluminense”, sentenciou empolgado com sua agremiação política e seu time de futebol.

    Ao descer no aeroporto de Manaus, a pretexto de fazer compras em lojinhas ali mesmo no terminal de passageiros, dei um perdido em João Melo e rezei para que pudesse viajar tranquilo, sem ouvir conversa alguma, durante as duas horas e trinta minutos que enfrentaríamos entre Manaus e Brasília.

    Entrei no Airbus 210 e, sabendo-a quase vazia, corri a isolar-me na última fileira de poltronas. Antes que eu conseguisse abrir meu livrinho de palavras cruzadas, ouvi a voz alta e em falsete de João Melo: “Eita, parente, esse avião é tão grande que eu quase não consigo te encontrar”. Lasquei-me.  

    Obrigado a dividir a atenção entre jogadas de mestre feitas por jogadores do Rubro-negro e lances dos bastidores da política roraimense. Depois da aterrissagem e despedidas no Aeroporto Internacional de Brasília, Joãozinho sentenciou: “Parente, pra mim só existem dois homens no mundo: Ulisses Guimarães na presidência do PMDB e Márcio Braga na presidência do Flamengo”. 

    Continuar lendo
      1896 Acessos
      0 comentários
    Aroldo Pinheiro

    Juiz ladrão

    Depois do fiasco contra a Alemanha na última copa e do fraco desempenho sob a batuta de Dunga, a Seleção Brasileira de Futebol parece estar achando seu caminho.  Assim sendo, o verde-amarelo da camisa de nossos jogadores volta a empolgar torcedores.

    Expectativas, críticas às convocações, a eterna disputa com a Argentina, o medo de que equipes menores possam surpreender, o receio de enfrentar seleções famosas e maceteadas, tudo isso faz parte do dia a dia dos papos em esquinas e mesas de bar. O esporte trazido por Charles Miller par o Brasil, enfim é papo recorrente.

    Causos também. Há muita coisa interessante no anedotário do futebol Brasileiro.

    Quase todo cidadão boa-vistense com mais de quarenta anos conheceu Áureo Cruz. Nem que seja de ouvir falar. Elegante, galanteador, ele era uma espécie de príncipe no reino da Macuxilândia.

    Nascido de família abastada, as poucas vezes em que trabalhou foram para tirar algum proveito social ou investir em nova paquera. Áureo, entre outras coisas, foi diretor e locutor da Rádio Difusora Roraima. Apaixonado por esportes, fazia parte da Federação Roraimense de Futebol e do quadro de árbitros local; Áureo, também, era torcedor fanático do Atlético Roraima Clube.

    Estádio João Minieor, alguma tarde dos anos 1960. Lotado. Mais de 30 pessoas ocupavam o palanque coberto de zinco; umas 80 se aboletavam no alambrado de madeira que isolava o campo de terra. De terra não: de barro. Naquele tempo, não existiam gramados em Boa Vista. O povo esperava o início do clássico: Baré X Roraima. Só havia dois clássicos no território: Baré X Roraima ou Roraima X Baré.

    O primeiro tempo da partida terminou zero a zero. O segundo seguia modorrento. Os atletas suavam a cachaça ingerida no sábado; estavam amis pra tomar água do que pra correr atrás da bola. Aos 32 minutos, Roberto recebeu um lançamento e, de trivela, chutou contra a meta guardada por Guilherme. Mário Rocha acordou para mexer no placar.

    Áureo Cruz, o árbitro, se desesperou. Ameaçou até expulsar o bandeirinha que não tinha marcado o off side¹. Do reinício do jogo até o fim dos 45 minutos regulamentares, o Baré prendia a bola e administrava a vitória. A torcida alvi-rubra festejava a conquista do troféu Governador do Território.

    Quarenta e seis minutos. O árbitro, sem encarar o público, deixava a bola rolar. Quarenta e oito, quarenta e nove, 50 minutos. Abdala Fraxe ameaçava invadir o campo. Aos 57 minutos, Tracajá roubou a pelota do center half² barelista e, morrendo de cansaço, chutou contra a meta de Zé Maria. Chute chocho. O goleiro escorregou, caiu e a bola entrou. O árbitro sorriu e deu um pulo com a mão fechada para cima; em seguida, recolheu a redonda e apitou o fim da partida. Pronto. A final do torneio ficou transferida para o próximo domingo.

    Protegido pelos guardas territoriais, Maxixe, Duca, Coivara e Cento-e-seis, o juiz cruzava o portão do estádio sob protestos da torcida do Baré, quando Antônia Mariê aproximou-se de Áureo, meteu-lhe o dedo na cara e disparou:

    - Juiz ladrão!!!

    Áureo, com empáfia, antipatia, imponência, prepotência e ironia, respondeu à torcedora:

    - O juiz pode ser ladrão, mas é soberano.

    -------------

    off side¹ - impedimento.

    center half² - meio de campo

    Continuar lendo
      4072 Acessos
      0 comentários
    Aroldo Pinheiro

    O tenente e as medalhas

    Doutor Francisco Elesbão da Silva, médico baiano que adotou Boa Vista para viver e morrer, dizia não conhecer povo tão espirituoso, tão sacana, quanto o povo de Roraima. Bambão se divertia com o anedotário macuxi. Como se não bastassem as histórias protagonizadas por nossa gente, de vez em quando, pessoas vindas de longe tomam para si o papel principal de causos interessantes.

    Criado em 1943, o Território Federal do Rio Branco recebia governadores escolhidos na capital do Brasil. Muitas vezes, esses governantes eram pessoas inconvenientes para o Executivo federal, que, para ver-se livre de aporrinhações, mandava-os para bem longe. Mais longe do que o Território do Rio Branco? Impossível.

    Lá pelo final dos anos 1950 – ou início da década de1960 –, o novo governador trouxe em sua equipe, um tenente que, na função de ordenança, fazia tudo o que seu mestre mandava. Insistente e persistente, tenente Palma Lima conseguiu ser nomeado prefeito de Boa Vista.

    Palma Lima era apaixonado pelo Exército e tinha verdadeira adoração pela farda verde-oliva. Sempre usando impecável uniforme engomado e vincado, sapatos tão brilhantes que refletiam a luz do sol, óculos Rayban – independentemente do local e da hora do dia –, o tenente gostava de desfilar entre sua moradia, na Praça do Centro Cívico, a residência governamental, na avenida Jaime Brasil, e o Palácio do Governo, na esquina da rua Coronel Pinto com a avenida Getúlio Vargas. Narcisista ao extremo, ele imaginava que a população o admirava da mesma maneira que idolatrava os astros do cinema americano daquele tempo.

    No peito, Palma Lima carregava muitas medalhas. Até hoje, não sei onde nem como o militar conseguiu tantas comendas. Dizem até que ele comprou alguns daqueles enfeites. Na cidade, a empáfia do militar tornou-se motivo de piada e deu origem a algumas expressões. Se um cidadão comparecia muito elegante a qualquer acontecimento, alguém comentava: “Tu estás mais bonito do que a farda do tenente”; se uma mulher surgia com brincos, pulseiras e cordões de ouro exagerados, ouvia: “Tu estás mais dourada do que o peito do Palma Lima”.

    O tenente sentia tanto orgulho da farda que fazia questão de pendurá-la na janela de seu quarto no Hotel Boa Vista, hoje, Aipana Plaza. Com as medalhas cuidadosamente viradas para a entrada do estabelecimento, claro.

    Exonerado o governador, Palma Lima deixou Boa Vista.

    Certo dia em Manaus, lanchando na Sorveteria Siroco, olhei para o lado e vi, na janela de apartamento térreo do pequeno Hotel Ideal, uma jaqueta verde-oliva bem passada, bem vincada. Dezenas de medalhas naquela peça de roupa chamaram minha atenção. Pedi a conta e assuntei com o garçom: - Você sabe o nome do militar que mora naquele apartamento?

    Com sorriso maroto, o rapazola me respondeu: - Quem mora aí é o Tenente Medalhinha. – E arrematou: “Toda tarde, ele se fantasia de general e faz plantão na esquina pro povo admirá-lo”

    Continuar lendo
      1976 Acessos
      0 comentários
    Aroldo Pinheiro

    Hipocondria

    - Bom dia, dona Rosa, tudo bem?

    - Que nada meu filho, a coluna hoje tá incomodando tanto que dá vontade de morrer...

    - Oi, dona Rosa, há quanto tempo; alguma novidade?

    - Essa enxaqueca me incomoda demais. Já tomei três Cibalenas e a dor de cabeça não passa...

    - Ei, dona Rosa, a senhora por aqui? O que houve?

    - Vim trazer a mamãe pra fazer a hemodiálise. Enquanto ela está na máquina, aproveitei para bater uma chapa, pois ando sentindo umas dores muito esquisitas na parte superior do
    pulmão esquerdo. Acho que tenho algum problema na pleura.

    Cefaléia, otite, sinusite, gengivite, afta, bócio, bursite, artrite, hérnia de disco, bico de papagaio, prisão de ventre alternada com diarréias, corrimento, joanete, unha encravada, ela reclamava de tudo. Doença era com ela. Dona Rosa reclamava até de peido engatado. 

    Quando dona Rosa não tinha nenhum sintoma anormal, transferia para os parentes. Suas conversas eram sempre recheadas com doenças e tratamentos. Além da hipocondria, ela era
    de um pessimismo ímpar. Acho que, quando criança, assistiu muito aos desenhos de Hardy Har-har - aquela hiena que passava o tempo todo resmungando “Oh, dia..., oh, azar... Eu acho que não vai dar certo”.

    No dia seguinte ao seu quinquagésimo aniversário, dona Rosa decidiu fazer um check-up. O médico, ao estudar o calhamaço de exames, auscultar, e medir pressão, deu-lhe a inesperada e triste notícia:

    - Dona Rosa, a senhora tem saúde de ferro; nesse embalo a senhora chega fácil, fácil nos cem anos.

    A paciente caiu em desespero:

    - Esse doutorzinho é um incompetente. Já pensou: vem dizer que eu, logo euzinha, não tenho nada? Vou procurar outro médico, pois tenho certeza que minha saúde não anda nada
    boa... Pra cima de moá, jamé...?

    Visitou um, dois, quatro especialistas e o diagnóstico era o mesmo: “Saúde de touro, dona Rosa (ou seria saúde de vaca?)”.

    Desiludida com os médicos de sua cidade, dona Rosa decidiu consultar-se em Brasília, que considerava a referência da medicina nacional. Depois de visitar oito médicos e ouvir afirmações positivas sobre sua saúde, ela sentenciou:

    - A medicina nesse país tá uma vergonha. Esses médicos novinhos não tão com nada. Como é que não acharam nenhuma doença nesse corpo todo dolorido e alquebrado? Se eu morrer, minha filha, pode processar o plano de saúde.

    Continuar lendo
      3922 Acessos
      0 comentários
    Aroldo Pinheiro

    Morto é morto

    O sul do Pará andava movimentado. Garimpeiros desenganados por riquezas de Serra Pelada procuravam ocupação, sobrevivência. Às margens de estradas mal feitas e perigosas, pipocavam novos núcleos habitacionais. Uma mercearia, um lugar que vendesse qualquer tipo de comida e um puteiro eram o suficiente para dar origem a uma nova cidade.

    Em Rurópolis, seu Manel se destacava como o maior empreendedor. Vendo derrubadas de enormes árvores – suas e à sua volta – comprou duas serras circulares e montou madeireira. Em seguida, comprou desempenadeira, tupia e plaina e montou movelaria. Móveis toscos, mas móveis. Para não desperdiçar aparas de madeira, seu Manel decidiu montar funerária que seria explorada por seu único filho, Tuisca.

    Tuisca reclamava da falta de clientes para a funerária. No mês de agosto, ele se lembrava que o último caixão feito tinha sido para dona Merandolina, em fevereiro, serviço pelo qual não recebera, pois a gorda senhora era sua comadre e ele teve vergonha de apresentar fatura para o viúvo. E olha que, para acomodar quase 200 quilos da matrona, o caixão levou muito freijó.

    Tragédia! A caminho de Itaituba, na saída de Rurópolis, uma caçamba capotou. Mais de 50 feridos, 14 mortos. O prefeito do município tomou providências para que os peões tivessem enterros decentes. Depois de reunir-se com delegado, médicos, padre e pastor, determinou que seu Manel fabricasse caixões para os desgraçados que tiveram o azar de morrer naquele fim de mundo.

    Seu Manel e Tuísca festejaram. Em um só dia, venderiam mais caixões do que venderam nos últimos cinco anos. Garantindo pagamento antecipado, compraram combustível, contrataram peões e largaram o pau a construir ataúdes. 

    Com os caixões acomodados em surrado Mercedes 1111, o pessoal chegou ao galpão onde estavam, lado a lado, os cadáveres. Combinados sobre o sistema a ser usado no reconhecimento e acomodação, seu Manel gritava: “Aroldo Pinheiro de Souza!” Tuísca, entre os corpos, localizava o nominado e, ironicamente,respondia: “Presente!” O corpo era acomodado em caixão e recebia papel de identificação.

    Um, dois, três, oito defuntos reconhecidos, prontos e acomodados em seus respectivos paletós de madeira; seu Manel seguia na chamada: “Moisés Brasilino Filho!” Tuisca se aproximou de gordo, careca e feio defunto, vestindo estranha calça rosa de lycra, camisa em azul degradê, com lenço de seda ao pescoço, e respondeu: “Presente!” 

    Ao tentar arrastar o corpo, ouviu um sussurro efeminado:

    – Moço, eu não tou morto...

    – Papai, venha cá: esse cara diz que tá vivo! – Apavorou-se Tuísca.

    Seu Manel, papéis à mão, aproximou-se e ouviu o caboclo bodejar:

    – Eu tou vivo.

    – Vivo? Tu tá doido? – Questionou seu Manel, com medo de ter que devolver dinheiro por caixão não utilizado e, vendo o jeito estranho daquela aberração, acrescentou: “Olha, mana, tu pelo menos sabe escrever?” O empresário suspirou, puxou o moribundo pelos braços, acomodou-o no ataúde e encerrou: “Moisés, o doutor estudou muito pra se formar e disse que tu tá morto; o papel que o doutor assinou diz que tu tá morto... Agora, tu quer discutir com o doutor e com o atestado de óbito? Tu tá morto e vai ser enterrado, pronto!”Com dificuldade, acomodou o gordo no caixão, jogou-lhe a tampa em cima e determinou:

    – Tuisca, aparafusa aí bem apertado, pois parece que esse qualira é meio teimosinho!

    Continuar lendo
      4007 Acessos
      0 comentários
    Aroldo Pinheiro

    Noite de terror: barraco com plumas e paetês

    Depois de insistentes toques na campainha, abro a janela. Através das grades do portão, vejo as portas de um carro se abrir e, dele, uma profusão de cores cintilantes e gestos espalhafatosos. Figura gorda, traços indígenas – de longe, não dá pra saber se homem ou mulher –, trajando camisa rosa em degradê, grita com voz afetada:

    – Estamos aqui para reclamar em nome da classe; podemos entrar?

    Não sei a que classe a pessoa se refere. Sou contra visitas não anunciadas. E o que vizinhos falariam depois de ver aquelas coisas invadindo meu espaço em plena madrugada?

    Acendo um cigarro e peço-lhes que me liguem pela manhã. Proponho fazermos lanche em lugar discreto, onde eu pudesse ouvir reclamações e argumentos.

    De lá detrás, um dos visitantes, alto, sessentão, cabelos acaju e barba bem desenhada, propõe: “Vamos embora, meninos. Esse velho não tá com nada”.

    Antes que puxasse a última baforada de meu cigarro e fechasse a janela, outro veículo estaciona ao lado do primeiro. Dele, surge uma mulher feiosa, cara-de-cachimbo-cru, corpo talhado com machado, que grita: “É com o senhor mesmo que nós queremos falar!”

    “Ai, meu Deus, será que esse povo tá na porta certa?”, pensei. Digo à parente de Madame Min que estava dormindo, informo-lhe o número de meu celular e peço-lhe que me ligue pela manhã. “Não muito cedo, claro”.

    Os ocupantes do primeiro carro iniciam discussão com a bruxa do segundo. Acho que se conhecem. A mulher se diz defensora dos direitos e dos bons costumes; a figura estranha – aquela que eu não sei se é homem ou mulher – afirma ser homossexual assumido e que ninguém tem nada com isso. O bate-boca continua. E eu continuo sem saber se a figura foi registrada como macho ou como fêmea, pois, sabemos, homossexual pode pertencer a qualquer gênero.

    O barraco está armado. Imagino que tipo de comentários esse quiproquó vai render a meu respeito.

    Resolvo ignorar a pequena turba. Puxo nova tragada de novo cigarro que acendi sem me dar conta e, antes de jogar fora a guimba, vejo estacionar à frente de minha casa um terceiro veículo; nele, a inscrição “Associação dos Sambistas e Pagodeiros de Roraima”. Conversei com meus botões: “Agora deu. O carnaval está feito...”

    Algumas luzes se acendem nas casas vizinhas, silhuetas se desenham em cortinas, cachorros latem. Meu celular toca escandalosamente. Estiro o braço e, ao procurar identificar a origem da chamada, vejo piscando no display: “ALARME, 8H30; OPÇÕES: DESLIGAR, SONECA”. Desperto, desligo o despertador, olho pro teto, e eu, que não creio, dou graças a Deus por tudo não ter passado de pesadelo. 

    Continuar lendo
      1841 Acessos
      0 comentários
    Aroldo Pinheiro

    Jogo do bicho (modalidade síria)

    Nos anos 1940, depois de desmembrado do Estado do Amazonas e chegado à condição de território federal, o Rio Branco – esse foi o nome dado a uma das novas unidades da Federação – recebeu migrantes de diversos lugares. A grande maioria tinha deixado suas terras natais para buscar dias melhores cá nessas plagas. No meio de nordestinos, alguns sírios também descobriram a nova fronteira brasileira.

    Comerciantes se estabeleceram na rua principal de Boa Vista, a capital. Entre novos moradores, um desses sírios, ao ouvir falar sobre fortunas que banqueiros do jogo do bicho faziam no Rio de Janeiro, resolveu, ele mesmo, criar sua loteria zoológica. Sem conhecer os mecanismos usados na capital federal, Efraim, utilizando os mesmos 25 animais escolhidos por Barão de Drumond, escolhia, pela manhã, o nome do bicho a ser dado na apuração, escrevia-o em pequeno pedaço de papel, colocava esse papelucho numa caixinha de madeira e, por meio de barbante, deixava-a no topo de um mastro. Ao entardecer, a caixa era arriada e todos ficavam sabendo o resultado.

    Naquela época, no Maracangalha, barzinho onde se serviam cervejas mornas e bebidas quentes pegando fogo, a canalha resolveu contratar Agamenon, adolescente que vivia sob a tutela de Efraim para que, sem desconfiança do velho, visse o nome do bicho a ser escolhido para a tarde de sexta-feira.

    Cedinho, quando Efraim desenhava letras no papelucho, Agamenon esgueirou-se para ajudar os frequentadores do bar e defender um trocado para si. Pelas onze da manhã, no barzinho, o menino, sem jeito, tentou justificar-se:

    - Olha gente, não deu pra ver direito... Mas eu garanto que o bicho começa com B.

    Com propósito de quebrar a banca do neófito bicheiro e fazer farra com a grana do prêmio, os clientes de Abel Mesquita carregaram apostas no burro e na borboleta – únicos animais pertencentes ao jogo a iniciar-se com a letra B.

    Velho Efraim estranhou o grande volume de concorrentes naquele dia.

    Ao final da tarde, mais de 100 pessoas em volta do mastro, todos com sorrisos marotos estampados nas faces, viram o velho descer a caixinha, abri-la, desdobrar o papelucho e anunciar:

    - Brimas, deu biru!

    Continuar lendo
      2390 Acessos
      0 comentários
    Aroldo Pinheiro

    Consolo

    Ah, o anedotário brasileiro! Esse é riquíssimo. Com o advento da internet, coisas ocorridas – ou não – nos cafundós-do-judas chegam aos lugares mais distantes do Planeta.

    Pouquíssimas pessoas devem ter ouvido falar que, no Rio Grande do Norte, existe uma cidade chamada Equador. Sem relação alguma com as linhas que cortam o Planeta Terra horizontal e verticalmente, até hoje não consegui explicação do nome Equador para a cidadezinha de Equador.

    Mas, em Equador, vivia Chico Fumeiro. E, de lá, vem o causo.

    Chico Fumeiro não nasceu: surgiu. Adotado por família de posses, fez-se homem honrado por si mesmo. Do trabalho e persistência, tornou-se empresário onde qualquer taberneiro seria empresário, e, por bem querência, chegou a prefeito do lugarejo. Muito querido, por sinal.

    Chico Fumeiro botou muita gente no mundo. E essa gente ganhou mundo. Chico Fumeiro tem filhos em diversos estados do Brasil – Roraima, inclusive. Chico Fumeiro tem até um filho morando na China.

    Honrado em seus negócios, Chico Fumeiro não resistia a um rabo de saia e, de vez em quando, dava vazão a seus instintos masculinos no único puteiro da cidade. A esposa sabia, mas fazia vista grossa: “coisas de homens”, pensava.

    No ano passado, a prole de Chico Fumeiro decidiu reunir-se para uma grande festa na casa paterna. Por ironia do destino, o velho Chico Fumeiro morreu poucos dias antes da data programada para o regabofe. Filhos que viriam para uma grande evento se reuniram para velar e enterrar o patriarca.

    Morte rápida. A viúva de Chico Fumeiro não se conformava. Os filhos, a todo custo, tentavam mostrar à mãe que os desígnios de Deus são sabidos só pelo criador. Cristãos, tentavam confortar a mãe de qualquer jeito.

    Por ocasião da missa de sétimo dia de falecimento de Chico Fumeiro, os filhos, mais uma vez, se reuniram em torno da mãe para cortar choro e sofrimento. Ela, abatida, desfazia-se em prantos.

    Lá pelas tantas, a viúva entrou no banheiro e, de lá, saiu sem nenhuma lágrima a escorrer pelo rosto marcado por rugas deixadas pela vida. Surpreendeu os filhos quando disse:

    - É. Tá certo. È melhor ele ter sido levado por Deus do que por essas quengas aqui da cidade.

    Continuar lendo
      4077 Acessos
      0 comentários
    Aroldo Pinheiro

    Os que escapolem!

    Quem vive de ganhar a vida com as próprias habilidades manuais sabe bem a sensação de se deixar algo escapulir.

    O ato de escapulir é inspiração para muita alegoria, visto que é um ato arrebatador, cheio de adrenalina e semióticas. Visualmente, vejo arte nesse ato e me empenho no salto para, ao menos, bater na trave, derrubar a baliza e sorrir.

    O pescador tá lá no meio do lago, o peixe malha, ele levanta a rede e pega com descuido o tucunaré, que escapole. O Vaqueiro na mata cinza mira o golpe no boi, que, mais habilidoso, escapa. A ave de rapina, que geralmente não erra, deixa a presa escapulir e, daí, vem o improvável. O vendedor de absurdos que deixa escapar na última hora a vítima feita, amarga. O político que sem mais noção de suas charlatanices escapole pra fora do jogo e cai decadente.

    Quem escapuliu nunca contará a sensação de estar livre, pois, em tese, quem escapa de uma jamais quererá outra. Escapulir ou deixar algo escapulir pode bem ser empregado  com uma palavrinha da moda, desses tempos de marmotas e imposições insuspeitas, a meritocracia – mereceu tem, não mereceu não tem. Usado com afoito entre a classe empresarial, o termo é simplificado para justificar os fins do sistema capitalista.

    Na comunidade, quem vive sabe: tem roça, come; não tem, troca por outra coisa. E, se nada tem: solidariedade ou pega-se o alheio. Quando dito, com tanta naturalidade, que tem mais quem mais se empenha, numa linha rasa da interpretação imediatista, o lado mais humano de nossa humanidade pensa, a longo prazo, varrendo ecos das injustiças acumuladas. É um privilégio estender a memória a esse tempo. É um desafio ter tanta cultura para desromantizar os propósitos de cada argumento, quando o que se precisa mesmo é saber reordenar as coisas, visto que as mãos estão lisas, os músculos tesos e há de haver repouso para uma tentativa mais fatal, mais letal.

    Continuar lendo
      3966 Acessos
      0 comentários
    Aroldo Pinheiro

    Traficante de amor

    O pai morreu. Como herança, o rapaz recebeu pequeno comércio de miudezas e armarinhos. Logo, Fofão cansou de vender zíperes, botões, colchetes, fitilhos, sianinhas e colibris. Pouco dinheiro, muito pingado. Ele queria mais.

    Descobriu que comprar produtos na cidade venezuelana de Santa Elena de Uairén traria retorno mais rápido. Tornou-se sacoleiro. Capitalizou. Resolveu crescer. Comprou duas picapes Pampa, da Ford, e passou a investir em distribuição de petróleo.

    Cinco vezes por semana, cruzava a fronteira e, na volta, trazia gasolina descaminhada da terra do eterno Hugo Chávez. Riscos de sofrer acidente fatal ou de ser preso pela Polícia Federal levaram-no a abandonar a profissão de importador informal.

    Mas ele gostava de ganhar dinheiro. Se fosse com facilidade e dentro da ilegalidade, melhor ainda. Passou a trazer uísques, vinhos e vasodilatadores do país vizinho. Dava preferência à “ração pra pinto”, pois, em grande quantidade, podia ser acondicionada em pequenos pacotes e os ganhos eram altos. Lucro garantido e risco de ser pego quase zero.

    Em cada viagem, ele trazia centenas de cartelas com milagrosos comprimidos de Viagra e Cialis. Em viagem para repor estoque, Fofão chegou ao balcão da principal farmácia de Santa Elena e, usando portunhol caprichado, pediu:

    - Tienes Viagra y Cialis?

    - Si, señor; quantos? – Respondeu a balconista, brasileira de Uiramutã, na mesma linguagem do empreendedor.

    - Dá-me lo que tienes.

    - Señor, se lleva todos, como fícan los venezolanos? Ele, que não gosta dos hermanos, atacou: “Que se danen. Se ellos todos brochan, no más producirán venezolanitos”.

    Trinta e duas caixas de Cialis;quarenta e sete de Viagra. R$ 1.100 de lucro. “Bom demais”, festejou.

    Na alfândega brasileira, ele deu azar de, por amostragem, ter o veículo revistado. Os homens da lei encontraram os vasodilatadores. Até pensou em oferecer uma propina para os federais. Achou melhor não. “Perco a mercadoria, mas recupero o prejuízo na próxima viagem”, consolou-se.

    No entanto, a coisa não seria tão fácil assim. O chefe da fiscalização resolveu indiciá-lo como contrabandista de medicamentos. Ao ouvir a qualificação, ele aproximou-se da autoridade e, cheio de empáfia, bradou:

    - Contrabandista de medicamentos não. Meu trabalho tem cunho social. Sou um traficante de amor.

    Continuar lendo
      3824 Acessos
      0 comentários
    Aroldo Pinheiro

    Dança da chuva no Centro Cívico

    Na segunda-feira, bela manhã ensolarada, na frente da Assembleia Legislativa, um furdunço. Alto falantes a todo vapor, barulho demais, muito preto e muito vermelho, pensei: “Será que flamenguistas estão festejando o empate de 2 a 2 com o Corínthians?”

    Chegando mais perto, vi que dois grupos distintos se misturavam em manifestações e  reinvindicações diferentes: índios, por falta de tinta, usaram carvão para pintar os corpos de preto e exigiam algo do Ministério da Justiça; de camisetas e chapéus vermelhos, CUT e sei lá mais que agremiações de insatisfeitos protestavam contra a PEC 241.

    A farra era grande. Das duas aparelhagens de som saíam gritos de ordem – ou de desordem – simultâneos, ferindo ouvidos, além de índios cantando e gritando numa língua que só eles entendiam (se é que entendiam). O espaço na frente da “Casa do Povo” transformou-se em ensaio para a confusão de uma torre de babel.

    Estacionei meu carro e me aproximei da baderna decidido a fazer fotos. Quem sabe poderia até colher informações importantes para reportagem em meu jornaleco?

    Sob apreensivos olhares de policiais militares, curiosos, fotógrafos,cinegrafistas e jornalistas se perdiam naquela confusão. Pode até ser que esse cronista esteja errado, mas ali, alguns jovens pintados de preto, com as marcas Zorba e Calvin Klein bem destacadas em cuecas que sobravam um palmo acima de bermudões, pareciam ter sido recrutados na periferia da cidade para fazer número e barulho com silvícolas de verdade. Quer dizer: tinha índio genuíno misturado com índio “hecho en Paraguay”.

    Por falta de comando, índios e não índios se confundiam e ninguém mais era de ninguém. Tinha gente de camiseta e boné vermelhos segurando em pau de índio e índio botando a boca em butica de mulher de camiseta e boné vermelhos.

    De repente, sem que nenhuma autoridade tivesse surgido para, pelo menos, tentar ouvir reinvindicações daquela turba, imensa nuvem negra formou-se sobre a Praça do Centro Cívico e derramou milhares de litros de água, pondo fim, por algum tempo, àquela esculhambação.

    Com a roupa ensopada, sentei-me na calçada e pensei: “Os deuses devem ter achado que essa bagunça era um arremedo de dança da chuva e mandaram água pra amenizar o calor infernal que vinha fazendo em nossa cidade”.

    Continuar lendo
      1962 Acessos
      0 comentários
    Aroldo Pinheiro

    Boa memória X vaga lembrança

    Cem anos de vida é muita coisa. Há poucas décadas, não se vivia tanto. Nos anos 1950 e 1960,  um homem com 50 anos era considerado um homem velho. E poucos chegavam a essa idade.

    Com o progresso da ciência, mais e mais pessoas chegam facilmente aos 80, 90, 100 anos. Daniel Sapateiro completou 100 anos de vida com saúde e lucidez de fazer inveja a muito Rui  Figueiredo.

    Conheço seu Daniel desde que me entendo por gente. No balcão da loja de meu pai, muitas  vezes vendi-lhe ilhoses, botões rápidos, tachinhas, tinta Tic-Tac, mantas de vaqueta e saltos para sapatos.

    Há sete anos, quando seu Daniel comemorava 65 no ofício de sapateiro, eu, jornalista, fui  entrevistá-lo para reportagem no jornal Roraima Hoje. Tarde agradável conversando com o  paraibano de Cajazeiras.

    Falou-me sobre sua vida no Nordeste, sua vinda para Boa Vista, o casamento, a aquisição do  imóvel onde vive até hoje, a alegria com o nascimento do único filho, a felicidade de ainda ter irmãos.

    Na época, com 93 anos, seu Daniel disse-me ter ido a Brasília, onde participou da festa de 100  anos de sua irmã mais velha. Família longeva, Santa, a mana, morreu em 2014 com 108 anos de idade.

    Durante a entrevista, seu Daniel explicou-me que raramente algum freguês deixava de vir  buscar os sapatos deixados para serem reparados: “As pessoas se apaixonam por sapatos de qualidade e querem que eles durem a vida inteira”, explicou-me.

    Ele não soube me dizer como fazia para encontrar um calçado deixado há muito tempo, mas disse que a mão ia certa na prateleira e buscava o que ele queria.

    Lá pelas tantas, seu Daniel me perguntou:

    - Você é ou foi casado com dona Maura - uma mulher bonita que trabalha na Educação?

    - Sim...

    - Faz tempo “que não vejo ela”...

    - É, seu Daniel: Maura está morando em Brasília desde 2005; por quê?

    Seu Daniel levantou-se e pegou um saco plástico na prateleira. Entregou-me o pacote e, nele, estava escrito: MAURA PINHEIRO, 03/08/2004, R$ 16,00. Sorri e rcomentei:

    - Maura sempre foi desligada. Vou pagar pelo seu serviço e levar os sapatos pra ela em minha  próxima viagem ao Distrito Federal.

    ....

    Dias depois, em Brasília, abri minha mala e entreguei aquele pacote para Maura. Ela abriu o  saco plástico e, ao ver o velho par de sapatos, sacudiu os ombros:

    - Não entendi...

    - Tu mandaste consertar esses sapatos em 2004. Seu Daniel Sapateiro me alertou sobre o  esquecimento. Paguei pelo serviço e  trouxe-os pra ti, pois devias gostar muito deles.

    Maura não se lembrava dos sapatos. Claro, também não se lembrava de tê-los mandado para conserto e afrimou ter uma vaga lembrança de seu Daniel.

    Se ela chegar aos 100 anos, certamente não terá a mesma lucidez de Daniel Sapateiro.

    Continuar lendo
      2133 Acessos
      0 comentários
    Aroldo Pinheiro

    O homem nu

    Vivo sozinho há alguns anos. Antes, tinha muito medo da solidão. Com a experiência, descobri que viver sozinho não é sinônimo de ser solitário. Acostumei-me de tal maneira com a situação que não sei se me adaptaria a uma nova vida a dois. 

    Alguém mostrou que, entre as vantagens de morar sozinho, estão a possibilidade de usar banheiro com porta aberta, beber água no gargalo de garrafas, se esparramar na cama, não ter hora para dormir nem para acordar, comer o que quiser à hora que quiser... Tem mais uma: viver nu. Adoro viver nu. Chegando à minha casa, depois que o carro cruza o limite da rua, antes mesmo de o portão se fechar completamente, tiro toda a roupa e passo o resto do tempo como Deus me trouxe ao mundo.

    Portões de ferro e três metros de muro garantem minha individualidade em meu cantinho naturista.
    Mas, para viver assim, neguinho tem que ser cauteloso. Situações vexaminosas podem ocorrer.

    Sábado desses, em casa, nu, do jeitinho que gosto de ficar, lavei cuecas, li um pouco e, depois, ouvindo acordes emitidos por Eric Clapton, abandonei-me nos braços de Johnnie Walker - cachorro engarrafado, o verdadeiro amigo do homem. Lá pelas duas da manhã, resolvi limpar a cozinha e botar a sujeira para fora. Com poucos vizinhos, morando em rua de pouco movimento, parti para a ação do jeitinho que estava: vestido de nada. Com sacos de lixo nas mãos, acionei o comutador da entrada de visitas e dirigi-me à lixeira. “Pá” – um vento forte e sacana fechou o portão. Sem chave, sem controle remoto, como voltar pra dentro do meu terreiro?

    Como um homem de 62 anos, que não pratica nenhum exercício, poderia escalar um muro de três metros de altura? E se conseguisse subir, como chegar ao chão do outro lado sem desmentir ou fraturar ossos já meio corroídos pela osteoporose?

    Ali, lembrei-me que fugitivos da Pê-á usam a vizinhança como rota de fuga. “E se alguns meninos tiverem escapado e os homens vierem dar um baculejo por aqui?”, pensei.

    Apavorei-me com a possibilidade de, nu, às duas da matina, tentando pular um muro, dar de cara – ou de bunda – com policiais. Até que eu explicasse que berimbau não é gaita, os tiras já teriam me colocado aos costumes, bem do jeitinho que sabem e gostam de fazer.

    Na rua, caminhando de um lado para outro, pensando, lembrei-me que a casa do lado da minha estava desocupada, que o mecanismo do portão eletrônico estava desativado e que a parede entre nossos imóveis é bem mais baixa que a muralha que cerca o meu muquifo. Corri pra lá, abri o portão torcendo para que ninguém o ouvisse o impacto de ferrugem correndo pra lá e pra cá. Fiz-me de surdo para a cachorrada que latia ali perto, escalei dois metros e dez de muro e, já em casa, joguei-me na “piscínica” para controlar medo, nervosismo e batidas cardíacas. Ri da situação, tomei duas talagadas de uísque e, deitado na rede, sem me incomodar com as estupidezes que saíam da boca de Serginho Groissman, dormi. Nu, claro.

    Continuar lendo
      4108 Acessos
      0 comentários

    Colunistas

    Literatura psicodélica - Hudson Romério
    0 post
    Literatura psicodélica - Hudson Romério ainda não definiu sua briografia
    Consulte seu advogado - Alcides Lima
    0 post
    Consulte seu advogado - Alcides Lima ainda não definiu sua briografia
    Querido diário - Diva Gina Peralta
    2 posts
    Querido diário - Diva Gina Peralta ainda não definiu sua briografia
    Fernando Quintella
    0 post
    Fernando Quintella ainda não definiu sua briografia
    Menina de rua
    9 posts
    Biografia
    Érico Veríssimo
    15 posts
    Em construção
    Tia Lyka
    59 posts
    Tya Lika
    Ulisses Moroni
    23 posts
    Ulisses Moroni Júnior é promotor de justiça no ...
    Aroldo Pinheiro
    76 posts
    Aroldo Pinheiro,  roraimense, comerciante, jorn...
    Jaider Esbell
    5 posts
    Jaider Esbell veio da terra indígena Raposa Ser...
    Plinio Vicente
    36 posts
    Nascido há 71 anos em Nova Europa, re...
    © 2022 Criado e mantido por www.departamentodemarketing;com.br

    Please publish modules in offcanvas position.