Bloco do pó e respeito pelos mortos

    Há quem reclame da demora de um Sedex entre o Sul-maravilha e Roraima. Não recla­mem. Houve um tempo em que um telegrama levava até oito dias para chegar a Boa Vista. Explico: em nossa capital, a agência dos Correios não dispunha de serviço de telegrafia; assim, os pontos e linhas do Código Morse eram recebidos em Manaus e, depois de impressos, eram enviados para o vale do rio Branco por aviões do Correio Aéreo Nacional, cujas aeronaves só nos visitavam uma vez por semana.

    Pouco antes do carnaval, minha mãe recebeu telegrama noticiando a morte de meu avô. Lembro-me do choro e da tristeza em nossa casa. Vovô Manoel morava no Ceará e minha mãe não o via há alguns anos.

    Alguns anos antes, meu pai e alguns amigos tinham criado o Bloco do Pó, que prota­gonizava o ponto máximo do período momesco em nossa capital. Nos três dias da festa pagã, os foliões subiam numa cafuringa e, ao som de trombone, tocado por meu pai - o maestro -, tuba, saxofone, bumbo, surdo, caixas e tamborins, saíam levando música, alegria e jogando muito talco sobre quem chegasse perto.

    No domingo de carnaval, papai saiu de casa logo depois do almoço. Sumiu. Lembro-me que ao final da tarde, a pé, mamãe, eu e alguns de meus irmãos voltávamos da missa de sétimo dia da morte de meu avô, quando, na esquina das avenidas Jaime Brasil e Getúlio Vargas, ouvimos acordes de "Moço, qual é o pó? Eu nunca vi homem de renda e filó..."; logo, apareceu a cafuringa com o Bloco do Pó. Meu pai, mais alto do que seus colegas de farra, fantasiado de maestro, desta­cava-se no meio da trupe.

    Mamãe, abaixou e cabeça e, olhando para o lado, tentava esconder as lágrimas que es­corriam em sua face.

    Lá pelas nove da noite, em casa, ouviu-se o barulho do trombone sendo pendurado no gancho onde estaria sempre pronto para qualquer eventualidade. Em seguida, meu pai, ainda de fraque e cartola pretos, todo sujo de talco, entrou na cozinha e, ao servir-se de água retirada de um pote, ouviu mamãe dizer:

    - Isso é uma falta de respeito, Pinheiro. É esse o exemplo que você deixa para seus filhos?

    Papai sentou-se, tomou um trago de uísque e respondeu com a cara maia lavada do mundo:

    - Neuza, eu, sendo o comandante, não podia abandonar o barco com meus marujos. .. - E antes que mamãe começasse a chorar, ele acrescentou: "Veja que nós não passamos nenhuma vez aqui pelo nosso quarteirão. Teve uma vezinha que, quando chegamos perto da esquina, eu, como maestro, ordenei que os instrumentos silenciassem". 

    Pai herói
    A garantia
    Comment for this post has been locked by admin.
     

    By accepting you will be accessing a service provided by a third-party external to https://jornalroraimaagora.com.br/

    Colunistas

    Literatura psicodélica - Hudson Romério
    0 post
    Literatura psicodélica - Hudson Romério ainda não definiu sua briografia
    Consulte seu advogado - Alcides Lima
    0 post
    Consulte seu advogado - Alcides Lima ainda não definiu sua briografia
    Querido diário - Diva Gina Peralta
    2 posts
    Querido diário - Diva Gina Peralta ainda não definiu sua briografia
    Fernando Quintella
    0 post
    Fernando Quintella ainda não definiu sua briografia
    Menina de rua
    9 posts
    Biografia
    Érico Veríssimo
    15 posts
    Em construção
    Tia Lyka
    59 posts
    Tya Lika
    Ulisses Moroni
    23 posts
    Ulisses Moroni Júnior é promotor de justiça no ...
    Aroldo Pinheiro
    76 posts
    Aroldo Pinheiro,  roraimense, comerciante, jorn...
    Jaider Esbell
    5 posts
    Jaider Esbell veio da terra indígena Raposa Ser...
    Plinio Vicente
    36 posts
    Nascido há 71 anos em Nova Europa, re...
    © 2022 Criado e mantido por www.departamentodemarketing;com.br

    Please publish modules in offcanvas position.