Quem vive de ganhar a vida com as próprias habilidades manuais sabe bem a sensação de se deixar algo escapulir.
O ato de escapulir é inspiração para muita alegoria, visto que é um ato arrebatador, cheio de adrenalina e semióticas. Visualmente, vejo arte nesse ato e me empenho no salto para, ao menos, bater na trave, derrubar a baliza e sorrir.
O pescador tá lá no meio do lago, o peixe malha, ele levanta a rede e pega com descuido o tucunaré, que escapole. O Vaqueiro na mata cinza mira o golpe no boi, que, mais habilidoso, escapa. A ave de rapina, que geralmente não erra, deixa a presa escapulir e, daí, vem o improvável. O vendedor de absurdos que deixa escapar na última hora a vítima feita, amarga. O político que sem mais noção de suas charlatanices escapole pra fora do jogo e cai decadente.
Quem escapuliu nunca contará a sensação de estar livre, pois, em tese, quem escapa de uma jamais quererá outra. Escapulir ou deixar algo escapulir pode bem ser empregado com uma palavrinha da moda, desses tempos de marmotas e imposições insuspeitas, a meritocracia – mereceu tem, não mereceu não tem. Usado com afoito entre a classe empresarial, o termo é simplificado para justificar os fins do sistema capitalista.
Na comunidade, quem vive sabe: tem roça, come; não tem, troca por outra coisa. E, se nada tem: solidariedade ou pega-se o alheio. Quando dito, com tanta naturalidade, que tem mais quem mais se empenha, numa linha rasa da interpretação imediatista, o lado mais humano de nossa humanidade pensa, a longo prazo, varrendo ecos das injustiças acumuladas. É um privilégio estender a memória a esse tempo. É um desafio ter tanta cultura para desromantizar os propósitos de cada argumento, quando o que se precisa mesmo é saber reordenar as coisas, visto que as mãos estão lisas, os músculos tesos e há de haver repouso para uma tentativa mais fatal, mais letal.