O homem que atende à ligação recomenda que a reportagem tenha paciência e fale pausadamente, “pois padre Orestes está muito surdo”. Houve, de fato, dificuldade na comunicação para que o Roraima Agora agendasse a entrevista.
Algumas horas depois do primeiro contato, por detrás de grossas lentes, homenzinho mirrado, elegante e graciosamente vestido, luta com mais de uma dezena de chaves para abrir a porta da Casa Paroquial Nossa Senhora da Consolata, na Asa Norte, em Brasília (DF), e convida o repórter a entrar.
“Dou muito valor à pontualidade”, começa ele. E como se quisesse desmentir aquele homem que primeiro atendeu a reportagem, acrescenta: “O telefone do padre que falou com o senhor é antigo, velho, remendado... O meu é bom”. Logo, sorrindo, entregando um cartão de visita, arremata: “Na próxima vez, ligue direto para o meu número...”
Padre Orestes assume o lugar do repórter e, para matar sua própria curiosidade e, quem sabe, mostrar lucidez e atualização com mundo, bombardeia: “Como está a situação de venezuelanos no Estado? Como está o Calungá? O Surumu se desenvolveu?”
Antes de começar a responder perguntas, o sacerdote diz não entender o interesse de alguém sobre a sua vida, “pois sou só um homem comum que vem cumprindo missões nessa caminhada que Deus me deu”.
De sua temporada no norte do Brasil, o ex-padre-diretor adquiriu o hábito de acordar sempre, todos os dias, às três horas da manhã. “Se você trabalha até depois das 10h, 11h da noite, o trabalho não rende; assim, prefiro dormir cedo e começar a lida na madrugada”, explica.
Hoje, ele se sente mais sonolento do que quando era jovem e, para não perder a hora, tem três despertadores ajustados ao lado de sua cama.
GINÁSIO EUCLIDES DA CUNHA, 1958 (Foto: autor desconhecido)
Falando sobre a vida
Aos 101 anos de idade, completados em 31 de janeiro, com pesado sotaque italiano, padre Orestes, natural de Turim, conta que, no longínquo ano de 1951, estava pronto para missão nos Estados Unidos da América quando seus superiores determinaram que partisse para a prelazia do Território Federal do Rio Branco (hoje Estado de Roraima), onde assumiria a direção do recém criado Ginásio Euclides da Cunha.
Na época, não mais que 10 mil almas habitavam a nova unidade da Federação.
Sem luz elétrica, sem água encanada, a residência dos sacerdotes, na capital do Território, era abastecida por meio de um catavento que captava o líquido diretamente do rio Branco.
O prédio da Escola não estava finalizado. A ideia era ir concluindo: novas salas seriam construídas de acordo com a demanda e com a disponibilidade de verbas, que, segundo ele, eram muito curtas.
A sala para a primeira série era composta basicamente de adultos - talvez uns 20 -, pessoas que não puderam dar seguimento a seus estudos até então, quando o Território só oferecia o Ensino Primário.
O corpo docente do “ginásio” era formado por padres e um ou outro escolado que fazia parte da comunidade.
Quando Orestes chegou ao vale do rio Branco, o recém criado território federal era governado por Belarmino Neves Galvão. O padre diz que se tornou amigo da autoridade maior e, com ela, tomou muitas doses de uísque escocês, que aviões da Força Aérea Brasileira traziam da, então, Guiana Inglesa.
Paralelamente à direção da escola, padre Orestes desenvolvia atividades normais dentro da igreja. Conta que, durante as férias escolares, saiu muitas vezes para desobrigações pelo interior do Estado, onde viu muitas paisagens bonitas, além de fartura de caça e de pescado.
“Uma vez, na companhia de um índio, fui do rio Branco até Maiquetia [região de Caracas, na Venezuela]. Foram 12 dias de viagem. À noite, o índio se encostava em qualquer lugar e dormia como se estivesse num paraíso; eu, por meu lado, estava sempre preocupado com qualquer ruído à nossa volta e com a mão sempre pronta para usar a pistola 9mm que não saía da minha cintura”, relata.
“Meu trabalho sempre foi implantar e organizar escolas. Sinto muita pena por ter sido enviado para nova missão [no Rio Grande do Sul] em 1953, antes de completar quatro anos no Território do Rio Banco, pois não vi minha primeira turma de ginasianos se formar”, lamenta.
Padre Orestes é músico: toca órgão e piano. Diz que, apesar da insistência dos outros sacerdotes, não se apresenta em eventos da igreja. “Não pratico mais com assiduidade e acho que, se não for pra fazer bem feito, é melhor não fazer”, sentencia.
Ginasianos no pátio do GEC, ainda em fase de construção - 1962 (Foto: autor desconhecido)
Raridade milionária
Ghibaudo ouviu falar da existência de um Stradivarius nalgum lugar do imenso sertão roraimense. “Empenhei-me na busca dessa raridade. Viajei em pequenas avionetas, em barcos, canoas e em lombos de cavalo... Depois de um tempo, concluí que eram só rumores”. Sonha: “Se o violino existisse e eu o tivesse encontrado, poderia investir na obra da Missão da Consolata e ainda sobraria muito dinheiro para outras atividades”.
De Roraima, Orestes seguiu para o Rio Grande do Sul, onde ficou por alguns anos. Hoje, radicado em Brasília dedica-se, ainda, à coordenação de ensino em instituições da igreja. “Gosto de meu trabalho e, apesar de minha idade, meus superiores valorizam minhas ações. Raramente temos alguma divergência dentro das decisões que eu tomo”, festeja.
Considerações finais
Perguntado sobre a possibilidade de vir a Boa Vista para ser homenageado por ex-alunos do GEC, padre Orestes responde: “Eu me sentiria lisonjeado com o convite, mas, por questão minha, não volto aos lugares em que trabalhei. O tempo passou, as coisas mudaram e eu prefiro guardar na lembrança o tempo vivido por mim”.
Meninos, eu vi
Padre Orestes assistiu a passagens interessantes durante seus tempos em terras de Makunaima. Uma amostra:
ESTUDANTADA
Pausadamente, como se forçasse as lembranças, ele conta que, um dia, algum dos alunos botou pó de giz na careca do padre Bindo Maldolesi, professor de matemática. Injuriado, aborrecido, revoltado, o sacerdote pediu que o diretor suspendesse as aulas até que o culpado pela “agressão” fosse descoberto e expulso da escola.
“Reuni-me com o bispo e com os outros padres e tivemos muito trabalho até que padre Bindo se acalmasse e aceitasse voltar à sala de aula, pois aquilo ‘era coisa de estudante’”, conta sorrindo. Fato que é nunca se descobriu quem fez a sacanagem com o professor.
O GATO COMEU
“As madres tomavam conta de nossas vestes e providenciavam nossa alimentação. De carne bovina, elas faziam linguiças que, secas ao sol, resistiriam ao tempo, sem estragar.
Uma vez, por não ter linguiça bastante para todos os sacerdotes, resolvemos reclamar.
As freiras disseram que a reclamação não procedia.
Fizemos uma investigação e descobrimos que irmão Carlos [cujo sobrenome ele não se lembra mas garante que não era Casadio] escondia boa parte dos embutidos para comer sozinho”, relata com os olhinhos apertados, querendo rir.
ONDE ESTÁ O DINHEIRO?
Produtores locais guardavam o dinheiro de suas vendas em casa.
Com a inauguração da primeira agência do Banco do Brasil em solo roraimense, padre Orestes viu-se obrigado a aconselhar aqueles homens a depositarem suas economias na instituição financeira, onde estariam mais seguras e, até, podiam render algum trocado.
Convencido pelo sacerdote, um pecuarista abriu conta na agência bancária. Dois ou três dias depois de entregar seu dinheiro ao caixa da instituição, o homem levou padre Orestes até o gerente que, contrafeito, conduziu o correntista até o cofre-forte e mostrou-lhe onde e como seus caraminguás estavam bem guardados.
PRESENTE MORDEDOR
Para festejar o aniversário de tenente Guimarães, proprietário de O Átomo - primeiro jornal riobranquense -, homens e mulheres da sociedade local se reuníram para comes e bebes.
Aboletado entre autoridades civis, militares e eclesiásticas, o homeageado dominava o ambiente e recebia presentes que fazia questão de abrir para que todos apreciassem os mimos.
Do meio dos pacotes, o tenente alcançou um pequeno embruho; dentro deste, um mimoso estojo. Do estojo, o jornalista retirou uma sorridente perereca, com 32 alvos dentes incrustrados em brilhante resina cor de rosa.
Antes que tenente Guimarães escondesse o “presente” no bolso do paletó, convidados mais próximos dele sorriam e davam asas à imaginação sobre como e porquê aquela prótese viera parar ali àquela hora.