Aroldo Pinheiro

    Aroldo Pinheiro

    Aroldo Pinheiro,  roraimense, comerciante, jornalista formado pela Universidade Federal de Roraima. Três livros publicados: "30 CONTOS DIVERSOS - Causos de nossa gente" (2003), "A MOSCA - Romance de vida e de morte" (2004) e "20 CONTOS INVERSOS E DOIS DEDOS DE PROSA - Causos de nossa gente".

    Terça, 22 Agosto 2017 01:21

    Deixar como encontrou

    Josinaldo entrou no serviço público logo depois de completar 18 anos. Aos 30, funcionário de carreira, bom partido, deu mole, apaixonou-se por amazonense faceira e, quando deu fé, estava dizendo sim à pergunta feita por padre Luizinho, na igreja de São Francisco das Chagas. 

    Com os quatro filhos já encaminhados, Josinaldo e Patrícia resolveram pôr fim ao casamento. Nada de problema. Puro desgaste. Agora, perto de aposentar-se, Josinaldo vivia muito bem vivida a vida de solteiro e dizia que "nunca mais juntaria panos de bunda com mulher nenhuma". 

    Certa noite, numa dessas arapucas do destino, Josinaldo encontrou-se com Hildete – morena jeitosa que sempre lhe despertara tesão. O casamento de Detinha não ia lá muito bem e os encontros com Josinaldo passaram a ser cada vez mais frequentes. 

    Uns dois meses depois de iniciado o affair entre o casal de sexagenários, o divórcio de Hildete com Irineu foi homologado. Na mesma semana, sem nem virar o colchão desocupado, Josivaldo mudou-se para os aposentos da namorada. 

    Tudo ia bem até quando Detinha começou a ter crises de ciúmes e perturbar o juízo de Josinaldo sempre que ele saía para encontrar-se com amigos. A marcação era cerrada, as brigas se tornaram caa vez mais constantes e nosso funcionário público decidiu dar um basta à situação. 

    Numa sexta-feira, depois do almoço, Josinaldo explicou seus motivos e comunicou à parceira que voltaria para o seu muquifo e sua paz. Hildete não botou dificuldades, mas fez uma única exigência. 

    - Olha, Naldo, quando nós começamos a sair, eu tinha um homem nesta casa. Irineu só foi-se embora daqui depois que você surgiu em minha vida... 

    E propôs: "Você pode até ir-se embora de vez, mas só depois que eu arranjar um homem pra ocupar o seu lugar". 

    Não tenho certeza, pois o povo fala muito. Em mesa de bar, ouvi que Josinaldo anda doido pra encontrar um namorado para a sua ex-namorada. 

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    Segunda, 14 Agosto 2017 18:43

    Tá chegando mais

    No embalo desses forrós safados e de muito mau gosto, empresário de visão resolveu adaptar imensa área urbana para que aficionados se entregassem aos bate-coxas e rela-buchos. Contratou um arremedo de banda forrozeira, quatro periguetes que se diziam dançarinas, espalhou algumas dezenas de mesas e cadeiras de plástico pelo terreiro, deu o nome de Fazendinha ao mais novo point da cidade e deixou o fuzuê comer no centro. 

    Lá, dava gente de todo tipo. Em visita ao point, Tonhão, um amigo meu, sentenciou: "Meu irmão, eu nunca tinha visto tanta gente feia por metro quadrado". 

    Daniela, acadêmica de Comunicação Social na Universidade Federal de Roraima, 20 anos, mocinha de muito bom gosto, gostava da balada, mas oferecia resistência a lugares que considerava suspeitos. Lugares que pudessem "queimar o filme", como ela dizia. 

    Certa noite de sábado, depois de a turma zanzar sem rumo, alguém deu ideia de encerrar a farra no Fazendinha. Dani pulou fora. 

    - Não, não, não. Faço questão de não ir a esse lugar. Além de muito arriscado, lá só tem gente feia... 

    Os amigos rebateram: 

    - Ei, menina, nós vamos em grupo. Ninguém vai nos incomodar... Lá tem tanta gente, que tu nem vais ser notada. 

    Para não se tornar desmancha prazeres, Dani capitulou. Retocou a maquiagem, ajeitou a roupa e, de braços dados com dois amigos, misturou-se ao resto da galera. Ao cruzar o portão do point, a moçoila ouviu o refrão da música de boas vindas: "O Fazendinha tá cheio de quenga/ E cada hora tá chegando mais.../ O Fazendinha tá cheio de quenga/ E toda hora tá chegando mais..." 

    Fazer o quê? A acadêmica se entregou ao ritmo apelativo e dançou entre as "outras" quengas até o dia amanhecer. 

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    Domingo, 23 Julho 2017 03:42

    Chama que arderá para sempre

    "​Eu sou é madeira/ Em samba de roda já dei muito nó.../ Em roda de samba sou considerado,/ De chinelo novo brinquei Carnaval, Carnaval. Eu sou é madeira/ Meu peito é do povo do samba e da gente,/ E dou meu recado de coração quente/ Não ligo a tristeza, não furo eu sou gente. Sou é a madeira/ Trabalho é besteira, o negócio é sambar/ Que samba é ciência e com consciência/ Só ter paciência que eu chego até lá... Sou nó na madeira/ Lenha na fogueira que já vai pegar/ Se é fogo que fica ninguém mais apaga/ É a paga da praga que eu vou te rogar" (João Nogueira)

    Com letra e embalo da música de João Nogueira homenageio com saudade o Gilson, caboco querido, sangue bom, animado, espirituoso, brincalhão, bom de farra, amigo prestativo. 

    O peito de Gilson explodia com música de qualidade, com samba da gente. Carnaval era com ele. 

    Gilson era assim, não ligava pra tristeza, não furava: Gilson era gente. A notícia da morte do "Nó-na-madeira" – era assim que eu o cumprimentava, pois, para mim, essa música o identificava como bom intérprete de sambas bem humorados – pegou-me de surpresa. 

    Há algum tempo eu não me encontrava com Gilson. Não sabia que uma broca, em forma de câncer, estava corroendo essa madeira de lei roraimense. 

    Como boa madeira, Gilson se consumiu estalando, lutando contra essa doença que, covarde, invade organismos silenciosamente. 

    Gilson Leitão era nó na madeira, lenha na fogueira que já vai pegar e, se é fogo que fica ninguém mais apaga. 

    A chama de dor e saudade deixada por Gilson Leitão no coração de inúmeros fãs e amigos há de ficar acesa por meio das muitas horas de prazer e alegria que a companhia desse caboco nos proporcionou. 

    As noites roraimenses ficaram menos alegres. 

    Deus te guarde, Nó-na-madeira. 

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    Segunda, 22 Mai 2017 12:58

    O companheiro de viagem

    Não gosto de conversar com estranhos. Quando viajo, levo comigo algumas revistinhas de palavras cruzadas e, para evitar papos desinteressantes, me entrego aos quebra-cabeças.

    Um belo dia, ali pelos anos 1980, de viagem para Brasília, com conexão em Manaus, entrei em Boeing 737 da Varig e, avião praticamente vazio, sentei-me em lugar marcado  numa das primeiras fileiras de poltronas.

    Abri minha revista e abandonei-me nas horizontais e verticais. Ou melhor: quase me abandonei na “Recreativa”, pois, logo, um homem diminuto, vermelho como tomate, trajando camisa oficial do Clube de Regatas do Flamengo, cumprimentou-me e se dizendo “feliz por ter com quem conversar durante a viagem”, aboletou-se na cadeira ao lado, apertou o cinto e abriu a boca em interminável monólogo. 

    Joãozinho Melo, figura carimbada entre roraimenses mais antigos, como bom descendente de paraibanos, não deu sossego a meus ouvidos durante os 60 minutos de voo que separavam Boa Vista de Manaus.

    Eu não conseguiria ser desatencioso com pessoa tão querida e inocente. Depois de fechar minha revistinha, passei a ouvi-lo – e concordar com tudo o que ele falava. Disse-me que estava indo a São Paulo para convenção do PMDB, partido sob cuja sigla ele se elegeu vereador de Boa Vista, “e, aproveitando a oportunidade, vou ao Rio de Janeiro pra ver o Mengão dar uma peia no Fluminense”, sentenciou empolgado com sua agremiação política e seu time de futebol.

    Ao descer no aeroporto de Manaus, a pretexto de fazer compras em lojinhas ali mesmo no terminal de passageiros, dei um perdido em João Melo e rezei para que pudesse viajar tranquilo, sem ouvir conversa alguma, durante as duas horas e trinta minutos que enfrentaríamos entre Manaus e Brasília.

    Entrei no Airbus 210 e, sabendo-a quase vazia, corri a isolar-me na última fileira de poltronas. Antes que eu conseguisse abrir meu livrinho de palavras cruzadas, ouvi a voz alta e em falsete de João Melo: “Eita, parente, esse avião é tão grande que eu quase não consigo te encontrar”. Lasquei-me.  

    Obrigado a dividir a atenção entre jogadas de mestre feitas por jogadores do Rubro-negro e lances dos bastidores da política roraimense. Depois da aterrissagem e despedidas no Aeroporto Internacional de Brasília, Joãozinho sentenciou: “Parente, pra mim só existem dois homens no mundo: Ulisses Guimarães na presidência do PMDB e Márcio Braga na presidência do Flamengo”. 

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    Domingo, 30 Abril 2017 20:18

    Juiz ladrão

    Depois do fiasco contra a Alemanha na última copa e do fraco desempenho sob a batuta de Dunga, a Seleção Brasileira de Futebol parece estar achando seu caminho.  Assim sendo, o verde-amarelo da camisa de nossos jogadores volta a empolgar torcedores.

    Expectativas, críticas às convocações, a eterna disputa com a Argentina, o medo de que equipes menores possam surpreender, o receio de enfrentar seleções famosas e maceteadas, tudo isso faz parte do dia a dia dos papos em esquinas e mesas de bar. O esporte trazido por Charles Miller par o Brasil, enfim é papo recorrente.

    Causos também. Há muita coisa interessante no anedotário do futebol Brasileiro.

    Quase todo cidadão boa-vistense com mais de quarenta anos conheceu Áureo Cruz. Nem que seja de ouvir falar. Elegante, galanteador, ele era uma espécie de príncipe no reino da Macuxilândia.

    Nascido de família abastada, as poucas vezes em que trabalhou foram para tirar algum proveito social ou investir em nova paquera. Áureo, entre outras coisas, foi diretor e locutor da Rádio Difusora Roraima. Apaixonado por esportes, fazia parte da Federação Roraimense de Futebol e do quadro de árbitros local; Áureo, também, era torcedor fanático do Atlético Roraima Clube.

    Estádio João Minieor, alguma tarde dos anos 1960. Lotado. Mais de 30 pessoas ocupavam o palanque coberto de zinco; umas 80 se aboletavam no alambrado de madeira que isolava o campo de terra. De terra não: de barro. Naquele tempo, não existiam gramados em Boa Vista. O povo esperava o início do clássico: Baré X Roraima. Só havia dois clássicos no território: Baré X Roraima ou Roraima X Baré.

    O primeiro tempo da partida terminou zero a zero. O segundo seguia modorrento. Os atletas suavam a cachaça ingerida no sábado; estavam amis pra tomar água do que pra correr atrás da bola. Aos 32 minutos, Roberto recebeu um lançamento e, de trivela, chutou contra a meta guardada por Guilherme. Mário Rocha acordou para mexer no placar.

    Áureo Cruz, o árbitro, se desesperou. Ameaçou até expulsar o bandeirinha que não tinha marcado o off side¹. Do reinício do jogo até o fim dos 45 minutos regulamentares, o Baré prendia a bola e administrava a vitória. A torcida alvi-rubra festejava a conquista do troféu Governador do Território.

    Quarenta e seis minutos. O árbitro, sem encarar o público, deixava a bola rolar. Quarenta e oito, quarenta e nove, 50 minutos. Abdala Fraxe ameaçava invadir o campo. Aos 57 minutos, Tracajá roubou a pelota do center half² barelista e, morrendo de cansaço, chutou contra a meta de Zé Maria. Chute chocho. O goleiro escorregou, caiu e a bola entrou. O árbitro sorriu e deu um pulo com a mão fechada para cima; em seguida, recolheu a redonda e apitou o fim da partida. Pronto. A final do torneio ficou transferida para o próximo domingo.

    Protegido pelos guardas territoriais, Maxixe, Duca, Coivara e Cento-e-seis, o juiz cruzava o portão do estádio sob protestos da torcida do Baré, quando Antônia Mariê aproximou-se de Áureo, meteu-lhe o dedo na cara e disparou:

    - Juiz ladrão!!!

    Áureo, com empáfia, antipatia, imponência, prepotência e ironia, respondeu à torcedora:

    - O juiz pode ser ladrão, mas é soberano.

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    off side¹ - impedimento.

    center half² - meio de campo

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    Quinta, 27 Abril 2017 17:54

    O tenente e as medalhas

    Doutor Francisco Elesbão da Silva, médico baiano que adotou Boa Vista para viver e morrer, dizia não conhecer povo tão espirituoso, tão sacana, quanto o povo de Roraima. Bambão se divertia com o anedotário macuxi. Como se não bastassem as histórias protagonizadas por nossa gente, de vez em quando, pessoas vindas de longe tomam para si o papel principal de causos interessantes.

    Criado em 1943, o Território Federal do Rio Branco recebia governadores escolhidos na capital do Brasil. Muitas vezes, esses governantes eram pessoas inconvenientes para o Executivo federal, que, para ver-se livre de aporrinhações, mandava-os para bem longe. Mais longe do que o Território do Rio Branco? Impossível.

    Lá pelo final dos anos 1950 – ou início da década de1960 –, o novo governador trouxe em sua equipe, um tenente que, na função de ordenança, fazia tudo o que seu mestre mandava. Insistente e persistente, tenente Palma Lima conseguiu ser nomeado prefeito de Boa Vista.

    Palma Lima era apaixonado pelo Exército e tinha verdadeira adoração pela farda verde-oliva. Sempre usando impecável uniforme engomado e vincado, sapatos tão brilhantes que refletiam a luz do sol, óculos Rayban – independentemente do local e da hora do dia –, o tenente gostava de desfilar entre sua moradia, na Praça do Centro Cívico, a residência governamental, na avenida Jaime Brasil, e o Palácio do Governo, na esquina da rua Coronel Pinto com a avenida Getúlio Vargas. Narcisista ao extremo, ele imaginava que a população o admirava da mesma maneira que idolatrava os astros do cinema americano daquele tempo.

    No peito, Palma Lima carregava muitas medalhas. Até hoje, não sei onde nem como o militar conseguiu tantas comendas. Dizem até que ele comprou alguns daqueles enfeites. Na cidade, a empáfia do militar tornou-se motivo de piada e deu origem a algumas expressões. Se um cidadão comparecia muito elegante a qualquer acontecimento, alguém comentava: “Tu estás mais bonito do que a farda do tenente”; se uma mulher surgia com brincos, pulseiras e cordões de ouro exagerados, ouvia: “Tu estás mais dourada do que o peito do Palma Lima”.

    O tenente sentia tanto orgulho da farda que fazia questão de pendurá-la na janela de seu quarto no Hotel Boa Vista, hoje, Aipana Plaza. Com as medalhas cuidadosamente viradas para a entrada do estabelecimento, claro.

    Exonerado o governador, Palma Lima deixou Boa Vista.

    Certo dia em Manaus, lanchando na Sorveteria Siroco, olhei para o lado e vi, na janela de apartamento térreo do pequeno Hotel Ideal, uma jaqueta verde-oliva bem passada, bem vincada. Dezenas de medalhas naquela peça de roupa chamaram minha atenção. Pedi a conta e assuntei com o garçom: - Você sabe o nome do militar que mora naquele apartamento?

    Com sorriso maroto, o rapazola me respondeu: - Quem mora aí é o Tenente Medalhinha. – E arrematou: “Toda tarde, ele se fantasia de general e faz plantão na esquina pro povo admirá-lo”

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    Sábado, 15 Abril 2017 19:50

    Hipocondria

    - Bom dia, dona Rosa, tudo bem?

    - Que nada meu filho, a coluna hoje tá incomodando tanto que dá vontade de morrer...

    - Oi, dona Rosa, há quanto tempo; alguma novidade?

    - Essa enxaqueca me incomoda demais. Já tomei três Cibalenas e a dor de cabeça não passa...

    - Ei, dona Rosa, a senhora por aqui? O que houve?

    - Vim trazer a mamãe pra fazer a hemodiálise. Enquanto ela está na máquina, aproveitei para bater uma chapa, pois ando sentindo umas dores muito esquisitas na parte superior do
    pulmão esquerdo. Acho que tenho algum problema na pleura.

    Cefaléia, otite, sinusite, gengivite, afta, bócio, bursite, artrite, hérnia de disco, bico de papagaio, prisão de ventre alternada com diarréias, corrimento, joanete, unha encravada, ela reclamava de tudo. Doença era com ela. Dona Rosa reclamava até de peido engatado. 

    Quando dona Rosa não tinha nenhum sintoma anormal, transferia para os parentes. Suas conversas eram sempre recheadas com doenças e tratamentos. Além da hipocondria, ela era
    de um pessimismo ímpar. Acho que, quando criança, assistiu muito aos desenhos de Hardy Har-har - aquela hiena que passava o tempo todo resmungando “Oh, dia..., oh, azar... Eu acho que não vai dar certo”.

    No dia seguinte ao seu quinquagésimo aniversário, dona Rosa decidiu fazer um check-up. O médico, ao estudar o calhamaço de exames, auscultar, e medir pressão, deu-lhe a inesperada e triste notícia:

    - Dona Rosa, a senhora tem saúde de ferro; nesse embalo a senhora chega fácil, fácil nos cem anos.

    A paciente caiu em desespero:

    - Esse doutorzinho é um incompetente. Já pensou: vem dizer que eu, logo euzinha, não tenho nada? Vou procurar outro médico, pois tenho certeza que minha saúde não anda nada
    boa... Pra cima de moá, jamé...?

    Visitou um, dois, quatro especialistas e o diagnóstico era o mesmo: “Saúde de touro, dona Rosa (ou seria saúde de vaca?)”.

    Desiludida com os médicos de sua cidade, dona Rosa decidiu consultar-se em Brasília, que considerava a referência da medicina nacional. Depois de visitar oito médicos e ouvir afirmações positivas sobre sua saúde, ela sentenciou:

    - A medicina nesse país tá uma vergonha. Esses médicos novinhos não tão com nada. Como é que não acharam nenhuma doença nesse corpo todo dolorido e alquebrado? Se eu morrer, minha filha, pode processar o plano de saúde.

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    Sexta, 24 Março 2017 20:10

    Morto é morto

    O sul do Pará andava movimentado. Garimpeiros desenganados por riquezas de Serra Pelada procuravam ocupação, sobrevivência. Às margens de estradas mal feitas e perigosas, pipocavam novos núcleos habitacionais. Uma mercearia, um lugar que vendesse qualquer tipo de comida e um puteiro eram o suficiente para dar origem a uma nova cidade.

    Em Rurópolis, seu Manel se destacava como o maior empreendedor. Vendo derrubadas de enormes árvores – suas e à sua volta – comprou duas serras circulares e montou madeireira. Em seguida, comprou desempenadeira, tupia e plaina e montou movelaria. Móveis toscos, mas móveis. Para não desperdiçar aparas de madeira, seu Manel decidiu montar funerária que seria explorada por seu único filho, Tuisca.

    Tuisca reclamava da falta de clientes para a funerária. No mês de agosto, ele se lembrava que o último caixão feito tinha sido para dona Merandolina, em fevereiro, serviço pelo qual não recebera, pois a gorda senhora era sua comadre e ele teve vergonha de apresentar fatura para o viúvo. E olha que, para acomodar quase 200 quilos da matrona, o caixão levou muito freijó.

    Tragédia! A caminho de Itaituba, na saída de Rurópolis, uma caçamba capotou. Mais de 50 feridos, 14 mortos. O prefeito do município tomou providências para que os peões tivessem enterros decentes. Depois de reunir-se com delegado, médicos, padre e pastor, determinou que seu Manel fabricasse caixões para os desgraçados que tiveram o azar de morrer naquele fim de mundo.

    Seu Manel e Tuísca festejaram. Em um só dia, venderiam mais caixões do que venderam nos últimos cinco anos. Garantindo pagamento antecipado, compraram combustível, contrataram peões e largaram o pau a construir ataúdes. 

    Com os caixões acomodados em surrado Mercedes 1111, o pessoal chegou ao galpão onde estavam, lado a lado, os cadáveres. Combinados sobre o sistema a ser usado no reconhecimento e acomodação, seu Manel gritava: “Aroldo Pinheiro de Souza!” Tuísca, entre os corpos, localizava o nominado e, ironicamente,respondia: “Presente!” O corpo era acomodado em caixão e recebia papel de identificação.

    Um, dois, três, oito defuntos reconhecidos, prontos e acomodados em seus respectivos paletós de madeira; seu Manel seguia na chamada: “Moisés Brasilino Filho!” Tuisca se aproximou de gordo, careca e feio defunto, vestindo estranha calça rosa de lycra, camisa em azul degradê, com lenço de seda ao pescoço, e respondeu: “Presente!” 

    Ao tentar arrastar o corpo, ouviu um sussurro efeminado:

    – Moço, eu não tou morto...

    – Papai, venha cá: esse cara diz que tá vivo! – Apavorou-se Tuísca.

    Seu Manel, papéis à mão, aproximou-se e ouviu o caboclo bodejar:

    – Eu tou vivo.

    – Vivo? Tu tá doido? – Questionou seu Manel, com medo de ter que devolver dinheiro por caixão não utilizado e, vendo o jeito estranho daquela aberração, acrescentou: “Olha, mana, tu pelo menos sabe escrever?” O empresário suspirou, puxou o moribundo pelos braços, acomodou-o no ataúde e encerrou: “Moisés, o doutor estudou muito pra se formar e disse que tu tá morto; o papel que o doutor assinou diz que tu tá morto... Agora, tu quer discutir com o doutor e com o atestado de óbito? Tu tá morto e vai ser enterrado, pronto!”Com dificuldade, acomodou o gordo no caixão, jogou-lhe a tampa em cima e determinou:

    – Tuisca, aparafusa aí bem apertado, pois parece que esse qualira é meio teimosinho!

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    Depois de insistentes toques na campainha, abro a janela. Através das grades do portão, vejo as portas de um carro se abrir e, dele, uma profusão de cores cintilantes e gestos espalhafatosos. Figura gorda, traços indígenas – de longe, não dá pra saber se homem ou mulher –, trajando camisa rosa em degradê, grita com voz afetada:

    – Estamos aqui para reclamar em nome da classe; podemos entrar?

    Não sei a que classe a pessoa se refere. Sou contra visitas não anunciadas. E o que vizinhos falariam depois de ver aquelas coisas invadindo meu espaço em plena madrugada?

    Acendo um cigarro e peço-lhes que me liguem pela manhã. Proponho fazermos lanche em lugar discreto, onde eu pudesse ouvir reclamações e argumentos.

    De lá detrás, um dos visitantes, alto, sessentão, cabelos acaju e barba bem desenhada, propõe: “Vamos embora, meninos. Esse velho não tá com nada”.

    Antes que puxasse a última baforada de meu cigarro e fechasse a janela, outro veículo estaciona ao lado do primeiro. Dele, surge uma mulher feiosa, cara-de-cachimbo-cru, corpo talhado com machado, que grita: “É com o senhor mesmo que nós queremos falar!”

    “Ai, meu Deus, será que esse povo tá na porta certa?”, pensei. Digo à parente de Madame Min que estava dormindo, informo-lhe o número de meu celular e peço-lhe que me ligue pela manhã. “Não muito cedo, claro”.

    Os ocupantes do primeiro carro iniciam discussão com a bruxa do segundo. Acho que se conhecem. A mulher se diz defensora dos direitos e dos bons costumes; a figura estranha – aquela que eu não sei se é homem ou mulher – afirma ser homossexual assumido e que ninguém tem nada com isso. O bate-boca continua. E eu continuo sem saber se a figura foi registrada como macho ou como fêmea, pois, sabemos, homossexual pode pertencer a qualquer gênero.

    O barraco está armado. Imagino que tipo de comentários esse quiproquó vai render a meu respeito.

    Resolvo ignorar a pequena turba. Puxo nova tragada de novo cigarro que acendi sem me dar conta e, antes de jogar fora a guimba, vejo estacionar à frente de minha casa um terceiro veículo; nele, a inscrição “Associação dos Sambistas e Pagodeiros de Roraima”. Conversei com meus botões: “Agora deu. O carnaval está feito...”

    Algumas luzes se acendem nas casas vizinhas, silhuetas se desenham em cortinas, cachorros latem. Meu celular toca escandalosamente. Estiro o braço e, ao procurar identificar a origem da chamada, vejo piscando no display: “ALARME, 8H30; OPÇÕES: DESLIGAR, SONECA”. Desperto, desligo o despertador, olho pro teto, e eu, que não creio, dou graças a Deus por tudo não ter passado de pesadelo. 

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    Sexta, 10 Março 2017 02:42

    Jogo do bicho (modalidade síria)

    Nos anos 1940, depois de desmembrado do Estado do Amazonas e chegado à condição de território federal, o Rio Branco – esse foi o nome dado a uma das novas unidades da Federação – recebeu migrantes de diversos lugares. A grande maioria tinha deixado suas terras natais para buscar dias melhores cá nessas plagas. No meio de nordestinos, alguns sírios também descobriram a nova fronteira brasileira.

    Comerciantes se estabeleceram na rua principal de Boa Vista, a capital. Entre novos moradores, um desses sírios, ao ouvir falar sobre fortunas que banqueiros do jogo do bicho faziam no Rio de Janeiro, resolveu, ele mesmo, criar sua loteria zoológica. Sem conhecer os mecanismos usados na capital federal, Efraim, utilizando os mesmos 25 animais escolhidos por Barão de Drumond, escolhia, pela manhã, o nome do bicho a ser dado na apuração, escrevia-o em pequeno pedaço de papel, colocava esse papelucho numa caixinha de madeira e, por meio de barbante, deixava-a no topo de um mastro. Ao entardecer, a caixa era arriada e todos ficavam sabendo o resultado.

    Naquela época, no Maracangalha, barzinho onde se serviam cervejas mornas e bebidas quentes pegando fogo, a canalha resolveu contratar Agamenon, adolescente que vivia sob a tutela de Efraim para que, sem desconfiança do velho, visse o nome do bicho a ser escolhido para a tarde de sexta-feira.

    Cedinho, quando Efraim desenhava letras no papelucho, Agamenon esgueirou-se para ajudar os frequentadores do bar e defender um trocado para si. Pelas onze da manhã, no barzinho, o menino, sem jeito, tentou justificar-se:

    - Olha gente, não deu pra ver direito... Mas eu garanto que o bicho começa com B.

    Com propósito de quebrar a banca do neófito bicheiro e fazer farra com a grana do prêmio, os clientes de Abel Mesquita carregaram apostas no burro e na borboleta – únicos animais pertencentes ao jogo a iniciar-se com a letra B.

    Velho Efraim estranhou o grande volume de concorrentes naquele dia.

    Ao final da tarde, mais de 100 pessoas em volta do mastro, todos com sorrisos marotos estampados nas faces, viram o velho descer a caixinha, abri-la, desdobrar o papelucho e anunciar:

    - Brimas, deu biru!

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