No hospital de emergência, a mulher, de traços asiáticos, espera, pacientemente, por atendimento que nunca chega. Com ela, nenhum filho ou marido; apenas uma sacola plástica de supermercado, entre as pernas, lhe faz companhia, enquanto se perde dentro de si mesma olhando, fixamente, para a tevê exposta na recepção.
Ela se apresenta como Maria José Deroma, afirma ter 65 anos, – faz questão de pronunciar o “ere”. Com sotaque espanhol e olhos puxados como os orientais, diz ter nascido em Maués, no Amazonas, e que veio para Roraima com um ano de idade – morou em Pacaraima, município a nordeste do Estado.
Os pais, revela, morreram. Sem querer alongar a conversa, se esquiva das perguntas, balbucia sua verdade na certeza de que, logo, logo, será esquecida naquela cadeira para pacientes, como tantas vezes, todos os dias, por anos.
Sem se despedir, junta a sacola e sai sem rumo. Some no meio do concreto adoecido do hospital. Veste uma calça cinza, que diz ter mandando fazer numa costureira, blusa de algodão rosa claro desbotado, do avesso, sandálias de cor verde, que ganhou de um paciente, após receber alta, e chapéu pescador cobrindo os curtos cabelos brancos.
Ela não está só. Embora o governo não tenha parado para contar quantos são, os moradores de rua são vistos em diferentes locais de Boa Vista. Também estão no interior do Estado, esquecidos, abandonados, órfãos da família e de sua pátria amada, Brasil.
TRABALHO DIÁRIO: Carimbando folhas ou em bancos, casas lotéricas esticando a mão aos clientes na espera de uma esmola
Escritório improvisado
Horas depois, ela está de volta. Agora, vestida com short jeans curto, bainha desfiada chamando atenção para as pernas fortes e torneadas, outra camisa rosa claro, decotada propositalmente nas costas com tesoura, sem o chapéu, mas com o mesmo par de sandálias.
Sentada com as pernas cruzadas, está absorta segurando corretor líquido em uma das mãos e a caneta preta na outra, fazendo correções nas impressões carimbadas em folhas de caderno, presos a um clip. São muitas folhas, um trabalho minucioso e sem propósito, mas que ela faz como se fosse a tarefa mais importante de sua vida.
Por algumas vezes, se pune, estapeia a cara e fala palavrões em espanhol. Arranca olhares curiosos e sorrisos dos porteiros e atendentes da emergência do hospital. Cala-se, volta ao trabalho em seu escritório improvisado, acompanhada de mais sacolas plásticas de supermercado.
“Faço macumba”, interrompe o silêncio. E continua: “Faço perfume para mal olhado, insônia, sorte e dinheiro. A garrafa custa R$ 10”, avisa, querendo pôr medo e se livrar do infortúnio de ter que falar de si mesma para uma desconhecida.
Assim, a mulher anônima – de rosto conhecido há tanto tempo – passa mais um domingo na recepção do hospital. Saindo e entrando nas salas sem ser notada, ela vai preenchendo seu dia vazio de família, amigos e cheio de descaso da falta de políticas públicas para pessoas que sofrem transtornos mentais. “Já tive malária e fiquei internada aqui”, conta mostrando familiaridade com o local. Ela dorme, come, faz higiene pessoal em algum pavilhão do Hospital Geral de Roraima, onde guarda as sacolas com seus tesouros.
SEM BAGAGEM: Toda a vida de Josefina está amontoada dentro de sacolas de plástico (Eliane Rocha)
A vida inteira dentro de sacolas de supermercado
A identidade revelada espontaneamente antes não é a mesma escrita nas 24 Tele Senas: Josefina Aki Toyng. “É o nome de uma amiga”, desconversa. “Vou trocar e receber R$ 84; cada um vale R$ 3,50”, conta guardando rapidamente os títulos dentro de outro saco.
Toda a vida de Josefina está amontoada dentro de sacolas de supermercado. Roupas que ganha, alimentos, rolos de papel higiênico, escova e pasta de dente, cadernos, carimbos, canetas, corretores líquidos, envelopes de depósito do Banco do Brasil, estão, todos, dentro de sacos plásticos.
Enquanto a maioria das pessoas passa a vida enchendo a vida de bagagens - posses, dinheiro, títulos - Josefina encheu apenas três sacolas. É o que lhe basta para viver sem peso, culpa e sem ser notada também.
No auge dos 65 anos, que o governo chama de “melhor idade”, ela sobrevive à solidão, descaso, à falta de importância por ser ninguém no meio de tanta gente que entra e sai da casa que habita há tantos anos.
Josefina não tem sonhos - ou os esconde dentro das sacolas com medo de alguém lhes roubar, como fizeram com seus documentos. “Gosto de Militos [salgadinho feito à base de milho] e batata frita”, resume os raros prazeres que a vida lhe reservou, antes de sumir novamente sob o concreto frio e adoecido do hospital.
Reportagem publicada em 22 de novembro de 2016 na versão impressa do Roraima Agora