Margarida, que pede para não ser identificada, grávida, casou-se aos 17 anos de idade. Dois anos depois, teve o segundo filho. Aos 32 anos, formada em Contabilidade, foi aprovada em concurso público e passou a fazer parte da camada privilegiada da sociedade, com emprego estável e bom salário.
Jorge, marido de Margarida, dono de uma birosca, associou-se a amigo bem relacionado e tornou-se empresário, daqueles que vendem para o governo com preços superfaturados e recebem.
Navegando em céu de brigadeiro, Margarida e Jorge não tinham do que reclamar. Até que, em 2013, uma nuvem negra posicionou-se sobre os negócios de Jorge: o Governo do Estado, seu único provedor, deixara de pagar faturas de materiais fornecidos e de fazer novas compras. A empresa quebrou.
A queda no estilo de vida e o fato de viver praticamente à custa da esposa modificou o relacionamento de Jorge com a família. Desrespeito e agressões levaram à separação.
Passados dois anos, Margarida apaixonou-se de novo e botou o novo amor dentro de casa. Epaminondas, que não estudou além do ensino fundamental, ganha bem menos que a companheira.
Dando uma de machão, Epaminondas passou a controlar passos, ganhos e gastos de Margarida. Brigas em casa se tornaram constantes. Palavrões evoluíram para empurrões e, há três meses, Margarida levou a primeira surra.
Os filhos dela estão revoltados. Mariana, 19, saiu de casa e está morando com a avó materna. Miguel, 17, afirma que “vai matar Epaminondas” se a mãe dele for agredida de novo.
Amigas aconselham Margarida a registrar queixa e botar o companheiro para fora de casa. Ela, a vítima, enrola e arranja justificativas para não seguir conselhos.
Passo a passo de uma tragédia - Gilberto e Janaína em promessas de amor; corpo de Janaína no carro; Banalização da violência; corpo de Gilberto depois do suicídio (Autores desconhecidos)
No dia 26 de abril de 2014, a rua Pará, no Bairro dos Estados, registrou uma tragédia que abalou a cidade de Boa Vista. Naquele dia, o tenente da Polícia Militar Gilberto Vieira da Costa, 51, matou a tiros sua ex-companheira, Janaína Vieira Mota, 30, e suicidou-se.
Testemunhas afirmam que o casal esteve junto por oito anos e, por causa de constantes brigas e desentendimentos, estavam separados há dois meses. O policial militar, entretanto, não aceitava a situação.
Familiares dizem que, desde a separação, Janaína vinha recebendo ameaças de morte feitas pelo tenente e que ela não queria que Gilberto fosse a sua casa, pois tinha medo que ele fizesse algo contra a filha do casal, de 9 anos, ou contra uma mocinha de 14 anos, fruto de outro relacionamento de Janaína.
Na manhã de sábado, 26, o tenente chegou à residência da ex-companheira e começou discussão que foi levada até o veículo da vítima. Dentro do carro, o tenente disparou dois tiros em Janaína, que teve morte instantânea, para, em seguida, depois de ficar andando ali por perto, como se desorientado, atirou contra si, morrendo no local.
As duas histórias acima são emblemáticas. Fatos parecidos são registrados por delegacias de todo o Brasil e divulgados pela imprensa que, nos últimos tempos, enceta campanha contra a violência doméstica e feminicídios.
No Brasil, os números são alarmantes. Em 2018, uma em cada quatro mulheres passou por violência. Pesquisa feita pelo Instituto Datafolha estabelece que, em 2018, 27,4% das brasileiras acima de 16 anos passaram por violência, seja no ônibus, no trem, na rua, no trabalho.
Delegada Catherine Saraiva (Aroldo Pinheiro)
Catherine Saraiva, titular da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher, estabelecida na Casa da Mulher Brasileira, na rua Uraricoera, no bairro São Vicente, mostra que, apesar da rigidez da Lei Maria da Penha, os índices continuam crescentes. De janeiro a agosto de 2019, foram solicitadas 724 medidas protetivas e que, no mesmo período, 1452 registros de crimes de ameaça contra mulheres foram feitos.
A delegada ressalta que ameaças são mais perigosas do que se imagina, pois, se atitudes não forem tomadas, as chances de elas serem cumpridas são grandes. Por outro lado, Catherine faz questão de frisar que “com a modernização do sistema, consegue-se, em curto espaço de tempo, um despacho judicial determinando medidas”.
Psicóloga Tatiana Gonçalves (Reprodução Facebook)
Omissão pode levar a tragédias
Hoje, diferentemente de passado bem recente, as delegacias especializadas de atendimento à mulher contam com profissionais preparados para lidar com o problema.
Dentro de casa, os números assustam: 42% das ocorrências ocorreram no ambiente doméstico. Ressalta-se que, na mesma pesquisa feita pelo DataFolha, 52% das vítimas não denunciaram agressores nem procuraram ajuda.
De ofensas verbais até mesmo à morte, mulheres são alvo de violência em todo o mundo. Em algumas regiões do Planeta, religião ou cultura são usadas para justificar atos violentos contra o sexo feminino.
Relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) indica que, no mundo, sete em cada 10 mulheres já sofreram situações de violência em algum momento da vida. Cabe à sociedade mudar esse quadro.
Consultada pela reportagem, a psicóloga Tatiana Gonçalves, da Vara de Família do Tribunal de Justiça do Estado de Roraima, disse que as duas histórias narradas pelo Roraima Agora são mais comuns do que pensa. Enquanto você lê esta reportagem, milhares de mulheres estão passando pelos mais variados tipos de violência nos mais diferentes quadrantes do Globo terrestre.
Maria da Penha (Reprodução Facebook)
Lei Maria da Penha no combate à violência
Aprovada pelo Congresso Nacional, a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) torna mais rigorosa a punição para agressões contra mulheres no âmbito doméstico e familiar. A lei entrou em vigor no dia 22 de setembro de 2006 e sua efetiva aplicação vem incentivando mulheres a denunciar seus agressores.
O nome da lei é uma homenagem a Maria da Penha Maia, que foi agredida pelo marido durante seis anos até se tornar paraplégica, depois de sofrer atentado com arma de fogo, em 1983.
O marido de Maria da Penha ainda tentou matá-la por meio de afogamento e eletrocução, e só foi punido depois de 19 anos de julgamento, ficando apenas dois anos em regime fechado. A Lei Maria da Penha altera o Código Penal e possibilita que agressores de mulheres no âmbito doméstico e familiar sejam presos em flagrante ou tenham prisão preventiva decretada. Com essa medida, os agressores não podem mais ser punidos com penas alternativas, usando pagamento de cestas básicas, por exemplo, como era usual. A lei também aumenta o tempo máximo de detenção de um para três anos, estabelecendo ainda medidas como a saída do agressor do domicílio e a proibição de sua proximidade com a mulher agredida e filhos.
(Fonte: Agência Senado)
Apertando mais
Em setembro deste ano, a Lei 13.871/19, aprovada pelo Congresso Nacional, obriga o autor de violência doméstica ou familiar a ressarcir todos os danos causados por suas condutas, como por exemplo, os gastos da vítima com atendimento médico particular. Além disso, o agressor está obrigado ao ressarcimento de gastos com o SUS.
Com as modificações, o autor de violência doméstica ou familiar será obrigado a ressarcir gastos relacionados com equipamentos de monitoramento e segurança, como por exemplo, o botão de pânico, usado para acionar a polícia, em caso de perigo representado pelo agente.