Sexta, 23 Setembro 2016 22:06

    O homem nu Destaque

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    Vivo sozinho há alguns anos. Antes, tinha muito medo da solidão. Com a experiência, descobri que viver sozinho não é sinônimo de ser solitário. Acostumei-me de tal maneira com a situação que não sei se me adaptaria a uma nova vida a dois. 

    Alguém mostrou que, entre as vantagens de morar sozinho, estão a possibilidade de usar banheiro com porta aberta, beber água no gargalo de garrafas, se esparramar na cama, não ter hora para dormir nem para acordar, comer o que quiser à hora que quiser... Tem mais uma: viver nu. Adoro viver nu. Chegando à minha casa, depois que o carro cruza o limite da rua, antes mesmo de o portão se fechar completamente, tiro toda a roupa e passo o resto do tempo como Deus me trouxe ao mundo.

    Portões de ferro e três metros de muro garantem minha individualidade em meu cantinho naturista.
    Mas, para viver assim, neguinho tem que ser cauteloso. Situações vexaminosas podem ocorrer.

    Sábado desses, em casa, nu, do jeitinho que gosto de ficar, lavei cuecas, li um pouco e, depois, ouvindo acordes emitidos por Eric Clapton, abandonei-me nos braços de Johnnie Walker - cachorro engarrafado, o verdadeiro amigo do homem. Lá pelas duas da manhã, resolvi limpar a cozinha e botar a sujeira para fora. Com poucos vizinhos, morando em rua de pouco movimento, parti para a ação do jeitinho que estava: vestido de nada. Com sacos de lixo nas mãos, acionei o comutador da entrada de visitas e dirigi-me à lixeira. “Pá” – um vento forte e sacana fechou o portão. Sem chave, sem controle remoto, como voltar pra dentro do meu terreiro?

    Como um homem de 62 anos, que não pratica nenhum exercício, poderia escalar um muro de três metros de altura? E se conseguisse subir, como chegar ao chão do outro lado sem desmentir ou fraturar ossos já meio corroídos pela osteoporose?

    Ali, lembrei-me que fugitivos da Pê-á usam a vizinhança como rota de fuga. “E se alguns meninos tiverem escapado e os homens vierem dar um baculejo por aqui?”, pensei.

    Apavorei-me com a possibilidade de, nu, às duas da matina, tentando pular um muro, dar de cara – ou de bunda – com policiais. Até que eu explicasse que berimbau não é gaita, os tiras já teriam me colocado aos costumes, bem do jeitinho que sabem e gostam de fazer.

    Na rua, caminhando de um lado para outro, pensando, lembrei-me que a casa do lado da minha estava desocupada, que o mecanismo do portão eletrônico estava desativado e que a parede entre nossos imóveis é bem mais baixa que a muralha que cerca o meu muquifo. Corri pra lá, abri o portão torcendo para que ninguém o ouvisse o impacto de ferrugem correndo pra lá e pra cá. Fiz-me de surdo para a cachorrada que latia ali perto, escalei dois metros e dez de muro e, já em casa, joguei-me na “piscínica” para controlar medo, nervosismo e batidas cardíacas. Ri da situação, tomei duas talagadas de uísque e, deitado na rede, sem me incomodar com as estupidezes que saíam da boca de Serginho Groissman, dormi. Nu, claro.

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    Lido 8 vezes Última modificação em Sexta, 23 Setembro 2016 22:09
    Aroldo Pinheiro

    Aroldo Pinheiro,  roraimense, comerciante, jornalista formado pela Universidade Federal de Roraima. Três livros publicados: "30 CONTOS DIVERSOS - Causos de nossa gente" (2003), "A MOSCA - Romance de vida e de morte" (2004) e "20 CONTOS INVERSOS E DOIS DEDOS DE PROSA - Causos de nossa gente".

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