Marina Cantão dos Santos devia ser objeto de livro. Reportagem é pouco. Empresária, garimpeira em regiões barra pesada (era conhecida como a Goiana do 38), empregada doméstica, vendedora em balsa ou terra firme, enfim, perfil profissional multifacetado para quem estudou apenas até parte do antigo curso primário.
Firme nas palavras, lembra-se de cada etapa de sua vida com brilho nos olhos. Reconhece quem a ajudou. Gratidão faz parte de seu perfil. Ao lado do marido, Stanley “Boboco” Lira, roraimense da Maloca do Boqueirão, toca o restaurante Marina Meu Caso, à beira do Rio Branco. Continua com o ritmo acelerado e a língua afiada.
Nascida na Ilha de Marajó, Marina foi cedo para Belém, levada pelos padrinhos, Teresa e Tomás de Aquino. Aos 14 anos, eles se mudaram para Brasília. Lá, Marina casou-se. Estava em processo de separação e grávida ao inscrever--se em exame para operadora de rádio na Companhia de Pesquisa e Recursos Minerais.
A vaga era na Amazônia. Aprovada, mandou-se para Belém. O padrinho construiu-lhe currículo, pode-se dizer, exagerado. No papel, segundo grau completo e datilografia. Ao se apresentar, abriu o jogo com o diretor. Ele teve pena de Marina. Conseguiu segurar a situação até Abel, o filho, completar dois anos, quando transferiu-a para Itaituba. Lá, trabalhava das 13h às 22h todos os dias. Aprendeu a usar a fonia e cobria a chegada de equipes de campo, era pau para toda obra.
Goiana do 38
Com mudança na administração, Amélia, a chefe, saiu da CPRM e decidiu tentar a sorte no garimpo. Marina deixou Abel com uma amiga e foi junto. Seria a oportunidade de ganhar muito dinheiro. Antes, recebeu duas dicas importantes: jamais se dizer paraense e sempre andar armada.
Chegou ao garimpo como nascida em Goiás e com revólver no coldre. Sem conhecer armas, desembarcou com o trezoitão na cintura, mas com o cano virado para cima. O dono do lugar batizou-a de Goiana do 38, apelido que seguiu-a pelo resto do tempo de garimpo. Elas vendiam de cigarros a roupas de mergulho, até dona Amélia descobrir um câncer no cérebro. Morreu pouco depois, mas deixou a balsa com Marina. “Perdi minha segunda mãe”, lamenta.
Como a amiga era quem administrava o dinheiro, Marina enrolou-se e ficou endividada. No sufoco, viu oportunidade no garimpo de Serra Pelada, onde era proibida a presença de mulheres. Lá, ela driblou a vigilância do local quando assumiu a identidade de um travesti, morto dias antes. Passava o maior
sufoco, evitava assédio, e ganhava dinheiro.
Anos depois, o dono do hotel Itamaraty, em Boa Vista, leu perfil da agora empresária publicado pela jornalista Shirley Rodrigues em sua coluna. Ele denunciou a suposta farsa: “Conheci essa pessoa lá no Pará: é o travesti Geraldo”, conta Marina aos risos.
Marina e Boboco - dos negócios à vida amorosa (Reprodução Facebook)
Só love, só love
A parceria com Boboco deu-se em Roraima, embora o conhecesse desde Itaituba. No Estado desde 1987, Marina precisou de gerente de máquinas. Indicaram o agora marido. Quando viram, estavam apaixonados.
Marina passou maus bocados no garimpo roraimense.
Estava na pista Constituinte, construída quase toda na Venezuela, quando a Guarda Nacional “chegou com tudo”. Boboco alertou-a sobre o problema, pois conhecia bem a região, mas os donos insistiam estar no Brasil. “Prenderam e mataram muita gente”, relembra.
Ela fugiu, mas andava em círculos até chegar ao garimpo do Paolo. Foi salva pelo garimpeiro Santolino, conhecido como Pelé, a quem ajudara em Itaituba. “Salvei a vida dele lá e ele salvou a minha aqui, quando me reconheceu como a Goiana do 38”. Ganhou roupas novas, manteve o picuá com 700g de ouro. Vida de garimpo é assim.Um dia bom, outro nem tanto. Com pouco dinheiro, novamente endividada, restou a Marina voltar às vendas no varejo.
Começou trabalhando na Praia Grande. Depois, transferiu-se para o porto do Babazinho. Mais tarde, ocupou o terreno onde está o restaurante Marina Meu Caso, referência na culinária local. Reconhece o apoio do falecido empresário Neném Rebouças: “Ninguém queria me vender fiado. Ele acreditou em mim e eu cresci”, comenta.
Cobras
Marina admite ser teimosa. Adora pescar. Duas vezes teve problemas com sucuris. Na primeira, mesmo alertada antes por Boboco, atracou o seu bote na margem direita do rio. Armou a barraca descansada. Logo depois, o marido mandou recolherem tudo e voltarem para os botes. Lá vinham as cobras para o descanso noturno.
A outra foi mais problemática. Boboco disse-lhe para não entrar na água, perto das pedras. Marina desconsiderou. Estava com a linha na mão quando sentiu a mordida da sucuri em uma das pernas. O auxiliar veio em seu socorro, com o facão. Acertou tanto a cobra quando a perna da vítima.
Por que ela faz o que quer? “Porque sou assim mesmo. Crio caso. Por isso o nome do restaurante é Marina Meu Caso. Sempre decidi minha vida. Só não fui puta, nem me aliei a pessoas más. Quem manda na minha vida sou eu”, termina.
Hoje, Marina e seu restaurante, Marina Meu Caso, são casos de amor em Roraima.
Pau pra toda obra - Marina está sempre pronta para o trabalho. Na foto, ela transporta turistas entre a Praia Grande e o restaurante Marina Meu Caso (Reprodução Facebook)