Domingo, 23 Outubro 2016 00:06

    Boa memória X vaga lembrança Destaque

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    Cem anos de vida é muita coisa. Há poucas décadas, não se vivia tanto. Nos anos 1950 e 1960,  um homem com 50 anos era considerado um homem velho. E poucos chegavam a essa idade.

    Com o progresso da ciência, mais e mais pessoas chegam facilmente aos 80, 90, 100 anos. Daniel Sapateiro completou 100 anos de vida com saúde e lucidez de fazer inveja a muito Rui  Figueiredo.

    Conheço seu Daniel desde que me entendo por gente. No balcão da loja de meu pai, muitas  vezes vendi-lhe ilhoses, botões rápidos, tachinhas, tinta Tic-Tac, mantas de vaqueta e saltos para sapatos.

    Há sete anos, quando seu Daniel comemorava 65 no ofício de sapateiro, eu, jornalista, fui  entrevistá-lo para reportagem no jornal Roraima Hoje. Tarde agradável conversando com o  paraibano de Cajazeiras.

    Falou-me sobre sua vida no Nordeste, sua vinda para Boa Vista, o casamento, a aquisição do  imóvel onde vive até hoje, a alegria com o nascimento do único filho, a felicidade de ainda ter irmãos.

    Na época, com 93 anos, seu Daniel disse-me ter ido a Brasília, onde participou da festa de 100  anos de sua irmã mais velha. Família longeva, Santa, a mana, morreu em 2014 com 108 anos de idade.

    Durante a entrevista, seu Daniel explicou-me que raramente algum freguês deixava de vir  buscar os sapatos deixados para serem reparados: “As pessoas se apaixonam por sapatos de qualidade e querem que eles durem a vida inteira”, explicou-me.

    Ele não soube me dizer como fazia para encontrar um calçado deixado há muito tempo, mas disse que a mão ia certa na prateleira e buscava o que ele queria.

    Lá pelas tantas, seu Daniel me perguntou:

    - Você é ou foi casado com dona Maura - uma mulher bonita que trabalha na Educação?

    - Sim...

    - Faz tempo “que não vejo ela”...

    - É, seu Daniel: Maura está morando em Brasília desde 2005; por quê?

    Seu Daniel levantou-se e pegou um saco plástico na prateleira. Entregou-me o pacote e, nele, estava escrito: MAURA PINHEIRO, 03/08/2004, R$ 16,00. Sorri e rcomentei:

    - Maura sempre foi desligada. Vou pagar pelo seu serviço e levar os sapatos pra ela em minha  próxima viagem ao Distrito Federal.

    ....

    Dias depois, em Brasília, abri minha mala e entreguei aquele pacote para Maura. Ela abriu o  saco plástico e, ao ver o velho par de sapatos, sacudiu os ombros:

    - Não entendi...

    - Tu mandaste consertar esses sapatos em 2004. Seu Daniel Sapateiro me alertou sobre o  esquecimento. Paguei pelo serviço e  trouxe-os pra ti, pois devias gostar muito deles.

    Maura não se lembrava dos sapatos. Claro, também não se lembrava de tê-los mandado para conserto e afrimou ter uma vaga lembrança de seu Daniel.

    Se ela chegar aos 100 anos, certamente não terá a mesma lucidez de Daniel Sapateiro.

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    Lido 28 vezes Última modificação em Domingo, 23 Outubro 2016 00:07
    Aroldo Pinheiro

    Aroldo Pinheiro,  roraimense, comerciante, jornalista formado pela Universidade Federal de Roraima. Três livros publicados: "30 CONTOS DIVERSOS - Causos de nossa gente" (2003), "A MOSCA - Romance de vida e de morte" (2004) e "20 CONTOS INVERSOS E DOIS DEDOS DE PROSA - Causos de nossa gente".

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