Boa Vista, anos 1960, ruas empoeiradas, sem asfalto, sem calçadas. Num dia de ponto facultativo, depois de tomar preguiçoso café da manhã, Petrônio Mota recostou-se no muro de sua residência, na esquina da rua Coronel Mota com avenida Benjamin Constant, acendeu um cigarro e abandonou-se em pensamentos olhando para o movimento da cidade sem movimento.
Na avenida, lá perto do grupo Escolar Oswaldo Cruz, debaixo de guarda chuva, usando sombras dos pés de “dona téri” para proteger-se do sol escaldante, surge figura conhecida.
Depois de cruzar a rua Barão do Rio Branco, Davi Cruz, em indefectíveis calça e camisa de linho branco, atravessa a avenida para aproveitar a sombra de frondoso fícus italiano da frente da residência de Áureo Cruz. Com a visão cerceada pelas abas do chapéu e da sombrinha, o policial ouve a saudação:
- Bom dia, Davi.
A voz rouca, de garganta consumida pelos muitos pau-roncas fumados desde a infância, responde:
- Bom dia, Petrônio. Tudo bem?
- É. Vendo o tempo passar. Aonde você vai com tanta pressa?
- Vou aqui na casa do Santiago, tenho assunto urgente pra tratar com ele e com Maria Mota.
- Entra prum cafezinho, homem? - Tá bom. Já que você insiste, vou parar pra fumar um cigarro e prosar um pouquinho.
Entraram, sentaram-se à longa mesa da varanda e, entre uma e outra xícaras de café e muitos cigarros, se abandonaram em conversa. Quase monólogo, pois seu Davi dominava a prosa. Falou de caçadas, de pescarias, de doenças, de saudades, de vidas e de mortes.
Convidado para almoçar, Davi diz que “vai fazer só uma boquinha” e se farta com a rabada preparada por dona Dorzinha. Rabada com arroz e farinha d’água, grossa como piçarra, comida de macho, como o caboco.
Antes do suculento doce de caju, Davi lembra: “Rapá, eu tenho que falar com Santiago”.
Água fresca do pote, mais café, mais conversa. Davi falou sobre a filha que morava no Rio de Janeiro, sobre o arrependimento que sentia por ter comprado um jipe velho, Candango, que só vivia no prego, sobre a seca que não dava chance de o gado engordar, sobre a alta constante do custo de vida.
E chegou a noite.
Por cima da cerca de pau-rainha, Davi olha para a residência de Santiago, do outro lado da rua, volta-se para Petrônio e diz:
- Minha Nossa Senhora, o tempo passou e Santiago tá de saída com a Maria.
Ansioso para que a visita vá-se embora, Petrônio não faz comentário. Davi acrescenta:
- Tá bom, eu volto amanhã. Se você estiver por aqui, eu dou uma paradinha pra botar assuntos em dia...
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