À frente de um dos abrigos para imigrantes venezuelanos, coronel Balczó faz um selfie: registro para a posteridade
Europa, outubro de 1956. A população húngara decide desligar-se da União Soviética. A dura reação de Moscou chegou 19 dias depois. Os russos invadiram o país rebelde, retomaram o controle da situação e massacraram parte da população local. Quem pôde, fugiu daquele inferno. A família Kajári estava nesse grupo de refugiados. Fuga de cinema em direção à Áustria, onde passaram meses em abrigo para refugiados, até virem para o Brasil, em 1957.
América do Sul, 2016. O descontrole socioeconômico República Bolivariana leva à migração desenfreada de venezuelanos para o Brasil. São milhares de homens, mulheres e crianças em busca de futuro melhor. Sem ter onde ficar, ocupam as praças ou qualquer sombra que encontram. O governo providencia abrigos para refugiados em Pacaraima e Boa Vista. Nasce a Operação Acolhida.
Neste 2019, passados 63 anos da tragédia húngara, a reportagem do Roraima Agora encontra o tenente-coronel do Exército Brasileiro Atilla Zoltán Balczó de Andrade na coordenação do Abrigo Rondon 3, em Boa Vista. Bisneto da matriarca da família Kajári, ele se candidatou à vaga no processo seletivo realizado pelo EB. Oficial com o curso de Estado-Maior, quis contribuir no esforço de apoio aos refugiados do país vizinho.
“Durante anos, ouvi as histórias da família sobre a fuga da Hungria”, conta Balczó. “Quando aconteceu a invasão, meu bisavô estava no Brasil. Ele veio ajudar na instalação da fábrica de pólvora vendida pelos húngaros a empresários brasileiros. Sem ter como voltar à Europa, sugeriu a fuga do resto da família”.
Agenciadores de fuga cobraram pelo planejamento e acompanhamento na aventura. “Sob neve, minha bisavó, os dois filhos, genro, nora e netos saíram de Liter, onde moravam, de madrugada, atravessaram um rio gelado (a bisa nas costas do neto, Joséf) e caminharam até a fronteira com a Áustria. Minha mãe tinha sete anos à época”, prossegue o oficial. “Permaneceram meses no abrigo para refugiados de Linz”.
O desafio de trabalhar com refugiados tem sido grande experiência pessoal e profissional. O intenso treinamento recebido pelos integrantes da Força Tarefa antes de vir para a missão, inclusive com a participação das agências parceiras, prepara o grupo para o ambiente do trabalho. Mas viver a realidade emociona. “Sinto como se estivesse naquele abrigo europeu, com a minha família”, garante Balczó.
O processo de interiorização dos venezuelanos assemelha-se ao experimentado pela família do coronel na Áustria. “Eles foram inseridos no sistema de reunificação familiar, ou seja, havia parentes à espera do grupo no país de destino. No caso, meu bisavô, em Lorena, onde ele conseguiu emprego na própria fábrica de pólvora”, compara. A estratégia alivia o impacto da mudança quando a família está junta.
A Operação Acolhida coleciona inúmeras histórias de sucesso dos venezuelanos em outros estados. Recentemente, dois grupos foram alocados em Chapecó/SC, onde chegaram com empregos garantidos.
Na verdade, a maioria das crises humanitárias têm a mesma gênese: a busca pelo poder. Os afetados escapam como podem. Seja no frio congelante europeu, como aconteceu com a família Kajári, ou sob o sol inclemente da região amazônica, exemplo da chegada dos venezuelanos ao Brasil pela estrada, o importante é a atitude de quem os recebe. O trabalho governamental, com seus parceiros, e a generosidade do povo roraimense desde o primeiro momento, mostram como enfrentar as crises até o cenário mudar.
Do fundo do baú
Quando acabou a Segunda Guerra Mundial, em 1945, dois mamutes passaram a dominar o cenário internacional: a União Soviética, tendo a Rússia como país predominante, e os Estados Unidos. Comunismo e Capitalismo enfrentavam-se todos os dias, sem tréguas. Antes de embarcar no navio Provence rumo ao Brasil, a família Kajári recebeu roupas novas, brinquedos para as crianças e pequena maleta, onde estava escrito: “Estados Unidos – Programa de Refugiados”. Se os soviéticos oprimiam, seu adversário apoiava. Sorte da família húngara encontrar suporte em momento tão delicado. Na foto, estão: ao centro, a matriarca Zsuzsanna. Ao fundo, Joséf (filho), Joséf (neto) e o genro Pal (era músico. Tocava saxofone). Abaixo, Eszter (filha), Magdolna (nora), e, em primeiro plano, a neta Zsuzsanna, mãe do entrevistado.
A Volta
Em 1967, com saudades dos parentes que ficaram na Hungria, Magdolna, convence o marido, Joséf, a retornar ao país, apesar de o regime comunista manter-se no poder. Somente em 1989, depois do desmanche da chamada Cortina de Ferro e o fim da União Soviética, Joséf voltaria ao Brasil, onde reencontra os Kajári. Em 1991, 34 anos depois da fuga, Pal e Eszter, avós do coronel, voltaram ao país de origem, onde permaneceram durante seis meses, em contato com os familiares. A mãe de Balczó, Zsuzsanna, faleceu em 2015.
Abaixo: registros da invasão da Hungria, quando húngaros cruzavam a fronteira para fugir da opressão soviética