Mais uma dose...
Mesmo calejada, a alma sonha!
Tanto tempo, e ainda arde na boca...
Mesmo entorpecida, sabe que nada mudou.
- Mais uma, Zé! (Ele quase desaba sobre o balcão!)
– Caralho! Vai pra casa, Zé! Já é uma e meia da manhã... Amanhã tu trabalha, porra! (Pausa)
- Tô pagando ou pedindo favor? Quero mais uma!... Eu já pago caro pela vida e ainda tenho que ouvir essas ofensas!
- Porra, tu já caindo pelas tabelas... Vai pra casa!
(Pausa)
- De que me adianta ir pra casa? Nem casa eu tenho mais... Minha mulher me “butou” um chifre!
(Pausa)
- Também, tu só vive aqui enchendo a cara... E quando chega bêbedo em casa ainda quer ter razão... Tu batia nela! Ela não tem culpa pelo teu fracasso, porra!
- Cala a boca, seu filho da puta! (Desaba em si) Ela é minha mulher! Faço o que quiser... Merda de vida. (Pausa longa) – Bota minha saideira que eu vou-me embora
– Essa já é a quinta saideira, Zé!
- E tu deu pra contar essa merda agora? Deu pra isso?
(Pausa)
- Tua mulher também te meteu um cifre, seu corno! (Ri sem graça) Fugiu com aquele moleque lá da feira!
A solidão é foda. Compartilhada, é mais solidão ainda! Assim como as mazelas e as desilusões - dose nenhuma cala a alma, consola o corpo, alivia a dor. Todos têm seu quinhão: com seu peso e sua medida. É a parte que nos cabe dessa vida.
Mesmo sedenta, a alma não se sacia com toda a aguardente do mundo. O espírito é um poço sem fundo de conhecimento e humildade. Só os pobres de espírito enchem-no com o passado.
Zé, chega uma hora que temos que deixar nossos fantasmas para trás e seguir em frente. A solidão e o amargo da cachaça vão te acordar amanhã cedo: a boca seca, a cama vazia... Não adianta arrependimento. Agora é pretérito! Junta teus cacos, tua pouca sorte, tua parca fé ou fé nenhuma para mais um dia de labuta. Forças? Tu já não tens. Então grita, corre, foge pra algum lugar! Some. Esquece que tu existes.
Zé, chega de remoer o passado... A porra do passado passou! Tu tens sorte de ter esse teto... Te abrigas nesse boteco de merda! Aqui é a casa de tantos outros fracassados como eu, como tu, como nós! Nem tu ficas rico tirando o pouco que nós temos e nem nós mais pobres te dando o que não temos! Ambos riem de suas desgraças.
Se pudéssemos ser estranhos de novo, Zé! Qual dos “zés” deste mundo você queria ser? O zé que vende a pinga para os desiludidos ou o zé desiludido que compra a pinga de um zé desiludido? Somos lágrimas do mesmo choro. No final da noite, no frio, em pé naquela parada de ônibus, pegando chuva, ninguém nota a gente. Ninguém vê as lágrimas que se misturam os pingos d’água, Zé.