Quinta, 10 Julho 2025 13:56

    A caixa que nãp existia

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    Em Boa Vista, onde o sol brilha com uma crueldade quase bíblica, há casas que nascem como promessas e morrem como enganos. A de Antônio, por exemplo, era um sonho concreto, ou seria um pesadelo? Fui eu quem desenhou o projeto — planta limpa, instalação bem dimensionada, tudo como manda o figurino técnico. Mas não assinei a responsabilidade pela execução da obra. Um detalhe, dizia ele. Um desastre, digo agora.

    Chamou-me aflito, dizendo que a pia da cozinha vivia entupida, como se regurgitasse a comida dos dias anteriores. Levei comigo o projeto hidráulico, como se fosse uma escritura sagrada, e lá fomos, de planta na mão e esperança nos olhos, procurar a bendita caixa de gordura. Onde deveria estar, nada. Nem sombra, nem tampa. Apenas terra dura, como se Deus mesmo quisesse esconder o erro.

    Cavamos como arqueólogos de um desastre doméstico. E o que achamos? Nada. Melhor achamos o nada. A caixa jamais existiu. O tubo da pia, rebelde e sozinho, jorrava direto no solo, como um vômito clandestino. Uma casa nova com vísceras podres.

    — Mas como? — perguntei, quase num sussurro de padre diante do pecado revelado.

    — A grana tava curta, meu amigo... — respondeu Antônio, cabisbaixo. — O RT foi só pra papelada. Confiei na equipe que ele indicou.

    Ah, a confiança! Essa santa que vive de véu, mas dorme com qualquer um. E como todo pecado na construção, não veio só. Descobrimos mais horrores: paredes fora de prumo e esquadro, caimento do telhado com inclinação menor que a recomendada, pontos de infiltração por todo lado, tomadas decorativas e até ralos que desaguavam... no nada.
    Em Boa Vista, sob o sol impiedoso, uma casa pode parecer forte — até a pia começar a chorar. E quando isso acontece, não há desenho que salve. Apenas a amarga lição: obra não se faz com fé cega, mas com olhos arregalados. E, no fim, tudo isso por confiar onde se deveria fiscalizar. Porque em obra, meu caro, o erro não brota: ele é enterrado — como a caixa que nunca existiu.

    Lido 528 vezes Última modificação em Quinta, 10 Julho 2025 14:01
    Eduardo Marques

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