By Aroldo Pinheiro on Quarta, 03 Março 2021
Category: Crônica do Aroldo

Bloco do pó e respeito pelos mortos

Há quem reclame da demora de um Sedex entre o Sul-maravilha e Roraima. Não recla­mem. Houve um tempo em que um telegrama levava até oito dias para chegar a Boa Vista. Explico: em nossa capital, a agência dos Correios não dispunha de serviço de telegrafia; assim, os pontos e linhas do Código Morse eram recebidos em Manaus e, depois de impressos, eram enviados para o vale do rio Branco por aviões do Correio Aéreo Nacional, cujas aeronaves só nos visitavam uma vez por semana.

Pouco antes do carnaval, minha mãe recebeu telegrama noticiando a morte de meu avô. Lembro-me do choro e da tristeza em nossa casa. Vovô Manoel morava no Ceará e minha mãe não o via há alguns anos.

Alguns anos antes, meu pai e alguns amigos tinham criado o Bloco do Pó, que prota­gonizava o ponto máximo do período momesco em nossa capital. Nos três dias da festa pagã, os foliões subiam numa cafuringa e, ao som de trombone, tocado por meu pai - o maestro -, tuba, saxofone, bumbo, surdo, caixas e tamborins, saíam levando música, alegria e jogando muito talco sobre quem chegasse perto.

No domingo de carnaval, papai saiu de casa logo depois do almoço. Sumiu. Lembro-me que ao final da tarde, a pé, mamãe, eu e alguns de meus irmãos voltávamos da missa de sétimo dia da morte de meu avô, quando, na esquina das avenidas Jaime Brasil e Getúlio Vargas, ouvimos acordes de "Moço, qual é o pó? Eu nunca vi homem de renda e filó..."; logo, apareceu a cafuringa com o Bloco do Pó. Meu pai, mais alto do que seus colegas de farra, fantasiado de maestro, desta­cava-se no meio da trupe.

Mamãe, abaixou e cabeça e, olhando para o lado, tentava esconder as lágrimas que es­corriam em sua face.

Lá pelas nove da noite, em casa, ouviu-se o barulho do trombone sendo pendurado no gancho onde estaria sempre pronto para qualquer eventualidade. Em seguida, meu pai, ainda de fraque e cartola pretos, todo sujo de talco, entrou na cozinha e, ao servir-se de água retirada de um pote, ouviu mamãe dizer:

- Isso é uma falta de respeito, Pinheiro. É esse o exemplo que você deixa para seus filhos?

Papai sentou-se, tomou um trago de uísque e respondeu com a cara maia lavada do mundo:

- Neuza, eu, sendo o comandante, não podia abandonar o barco com meus marujos. .. - E antes que mamãe começasse a chorar, ele acrescentou: "Veja que nós não passamos nenhuma vez aqui pelo nosso quarteirão. Teve uma vezinha que, quando chegamos perto da esquina, eu, como maestro, ordenei que os instrumentos silenciassem".