By Aroldo Pinheiro on Segunda, 17 Setembro 2018
Category: Crônica do Aroldo

Juiz ladrão

Quase todo cidadão boa-vistense com mais de 50 anos de idade conheceu Áureo Cruz. Nem que seja de ouvir falar. Elegante, galanteador, Áureo era uma espécie de príncipe no reino da Macuxilândia. 

Nascido de família abastada, as poucas vezes em que trabalhou foram para tirar algum proveito social ou investir em nova paquera. Áureo, entre outras coisas, foi diretor e locutor da Rádio Difusora Roraima. Apaixonado por esportes, fazia parte da Federação Roraimense de Futebol e do quadro de árbitros local. Ele também era torcedor fanático do Atlético Roraima Clube. 

Nalguma tarde dos anos 1960, Estádio João Mineiro lotado: bem umas 30 pessoas ocupavam o palanque coberto de zinco; umas 80 se aboletavam no alambrado de madeira que isolava o campo de terra. De terra não: de barro. Naquela época, não existiam gramados em Boa Vista. O povo esperava o início do clássico: Baré X Roraima. Naquela época, só havia dois clássicos no território: Baré X Roraima ou Roraima X Baré.

O primeiro tempo da partida terminou zero a zero. O segundo seguia modorrento, enquanto os atletas suavam a cachaça ingerida na noite anterior. Estavam mais pra tomar litros de água do que pra correr atrás da bola. O garoto que tomava conta do placar cochilava. Aos 32 minutos, Roberto recebeu um lançamento e, de trivela, chutou contra a meta guardada por Guilherme. Mário Rocha despertou e trocou um dos zeros pelo número 1. 

Com o Baré ganhando de um a zero, Áureo Cruz, o árbitro, se desesperou. Ameaçou até expulsar o bandeirinha, porque este não tinha marcado o off side¹. Fim do primeiro tempo. 

Da reposição de bola, depois do gol engolido por Guilherme, até os 45 minutos regulamentares, a equipe alvi-negra prendia a bola e administrava a vitória. A torcida festejava, antecipadamente, a conquista do troféu Governador do Território. 

Quarenta e seis minutos. O árbitro, sem encarar o público, deixava a bola rolar. Quarenta e sete, quarenta e oito, quarenta e nove, 50 minutos... Abdala Fraxe ameaçava invadir o campo. Aos 57 minutos, Tracajá roubou a pelota do center half² barelista e, morrendo de cansaço, com meio metro de língua para fora da boca, chutou contra a meta de Zé Maria. Chute chocho. O goleiro escorregou, caiu e a bola entrou. O árbitro sorriu, deu um pulo com a mão fechada para cima para, em seguida, recolher a redonda e apitar o fim da partida. Pronto. A final do torneio ficou transferida para o próximo domingo. 

Protegido pelos guardas territoriais, Maxixe, Duca, Coivara e Cento-e-seis, o juiz cruzava o portão do estádio sob protestos da torcida do Baré, quando Antônia Mariê aproximou-se de Áureo, meteu-lhe o dedo na cara e disparou:

- Juiz ladrão!!!

Áureo, com empáfia, antipatia, imponência, prepotência e ironia, respondeu à torcedora: "O juiz pode até ser ladrão, mas é soberano".