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Começo, meio e fim
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Sexta, 08 Julho 2016 05:53

Começo, meio e fim

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Começo, meio e fim France Telles / Montagem Aroldo Pinheiro

Do anonimato para as páginas do Roraima Agora, em 30 de agosto de 2015. Era o começo da nova vida para o homem que passou parte dela invisível. Ganhou nome, teto para dormir, amigos e, depois, se foi da mesma forma que chegou às ruas de Boa Vista: silenciosamente

Foi enterrado com nome arranjado e roupa doada por alguém. Não teve velório, não teve choro, nem velas. Esse foi o fim de José Ivaniudo, o “Negão da Bola do Centro” ou Bob - assim chamado pelos amigos doentes mentais. Ele, que morou por mais de uma década nas ruas de Boa Vista, agora tem casa e endereço fixos, até um documento. Tudo adquirido com a morte.

Na quadra 15, lote 7, fila 2, jazigo 32 do cemitério particular Campo da Saudade - onde a vida continua: assim avisa a placa no portão de entrada - o homem desconhecido por todo o tempo que perambulou pelas ruas continua sem identidade.

Com o nome escrito que lhe arranjaram, data de nascimento e morte, nenhuma cruz - nem de madeira ou ferro – está fincada sobre a sepultura solitária e cheia de mato. Um desbotado buquê de rosas amarelas de plástico, plantado sobre o monte de barro, sugere afeto de quem esteve ali e prestou a última, ou talvez, única homenagem ao morto sem ninguém.

“Tinha umas doze pessoas no enterro dele”, diz André Rodrigues, jardineiro do cemitério, com a boca cheia de números. Ele ajudou a jogar até a última pá de barro que cobriu o caixão, pago pelo “Governo do Povo” – marca da gestão estadual de Roraima. A cova, no entanto, não foi comprada.

“Pode ficar enterrado por cinco anos; se não aparecer ninguém, desenterra os ossos, põe num saco e guarda à espera de alguém”, diz o jardineiro confirmando a informação de uma das atendentes do cemitério. “Ninguém nunca veio aqui”, reforça Rodrigues em seguida, referindo-se à visita de parentes.

Uma das doze pessoas vistas pelo jardineiro é Thiago Rocha Martins, funcionário do Centro de Atenção Psicossocial, conhecido Caps III. Foi ele quem cuidou do sepultamento e providenciou o único documento que identifica o anônimo, o atestado de óbito.

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A trajetória de um homem invisível: vagando pelas nas ruas de Boa Vista; depois, sob os cuidados do hospital. Por fim, anônimo numa sepultura (Fotos: Eliane Rocha)

A identidade do Zé ninguém

No atestado de óbito, um preenchido de “ignorados”. Não constam nomes dos pais, data de nascimento, nem a cor de sua pele foi-lhe dada corretamente. O negro foi enterrado sendo “pardo”. A causa da morte também é desconhecida, consta no documento “distúrbio ácido-básico e diabetes mellitus”.

“À tarde, ele passou mal, caiu no chão, foi levado ao hospital e morreu. Foi muito rápido”, conta a assistente social do Caps, Josemary Cordovas, folheando um caderno ata. “Ele morreu no dia 9 de dezembro de 2015, às 21h09, de embolia pulmonar”, atesta. O enterro só se deu seis dias depois de sua morte, em 15 de dezembro, às 16h50.
O nome José Ivaniudo, a primeira vez escrito em seu único documento, foi digitado de forma errada – trocaram o l por u. Mas quem se importa? Nenhum dos seus estava lá para reclamar, velar seu corpo, chorar na última despedida.

“Ele já chegou aqui [no Caps] com esse nome e com informação de que os pais moravam em Manaus”, lembra a assistente social. Desde que saiu do hospital e foi levado ao centro de saúde mental, localizado numa das principais e mais movimentadas avenidas de Boa Vista, Capitão Ene Garcez, nunca um parente ou amigo foi visitá-lo. Ele esteve internado desde o dia 16 de novembro do ano passado.

 

Da rua para a rua

A história de José teve seu primeiro capítulo escrito no jornal Roraima Agora em 30 de agosto de 2015. Após reportagem, ele foi resgatado pelo Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) e levado ao hospital, onde permaneceu até o dia 16 de setembro.
Dois meses depois, foi encaminhado ao Centro de Atenção Psicossocial - Caps III. Os números romanos indicam que é um serviço de atenção à saúde mental oferecido em municípios com mais de 200 mil habitantes. A casa acaba funcionando como internato de doentes mentais. Estado ou município ainda não dispõem de uma unidade para internação desses pacientes, muitos abandonados pela família e perambulando pelas ruas da capital.

Os doentes internados – e também os que são acompanhados pelo Centro - são atendidos por uma rede de serviços que inclui psiquiatria, psicologia, assistência social, educação física, enfermagem, terapia ocupacional, artesanato.

Sem nunca trocar uma palavra com ninguém, o ex-morador de rua era chamado pelos amigos internos e servidores da casa de Bob, por causa dos cabelos dread (tranças longas e finas) que usava - uma alusão ao cantor Bob Marley. Em seu silêncio diário, Ivaniudo passava o dia só observando o seu mundo através das grades do muro.

“Ele acordava, pegava uma cadeira, sentava lá na frente e ficava olhando para a rua. Depois de um tempo, pegava a cadeira de novo e ia lá pra trás. Passava horas olhando um pé de abiu”, conta a educadora física Jéssica Ribeiro.
Do lar provisório só saiu para ser enterrado. Sem parentes, com nome arranjado, José Ivaniudo saiu do mundo da mesma forma que a ele chegou: sem ser notado.

 

Lido 48765 vezes Última modificação em Sexta, 08 Julho 2016 06:17
Eliane Rocha

Eliane Rocha é jornalista formada pela UFRR. É pós graduada em assessoria de comunicação. Já recebeu mais de 10 prêmios jornalísticos em Roraima.

Eliane Rocha
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